Shunji Iwai

Valter José Maria Filho é crítico de cinema e televisão com mestrado e doutorado em Filosofia na USP, onde faz também pós-doutorado

 04/02/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 06/02/2017 as 14:36
Valter José Maria Filho, - Foto: Arquivo pessoal
Valter José Maria Filho – Foto: Arquivo pessoal
O excelente diretor japonês Shunji Iwai ainda não é aclamado no Brasil, como são, por exemplo, os também excelentes Naomi Kawase, Kioyshi Kurosawa e Hirokazu Kore Eda.  Mas é um cineasta a quem o adjetivo genial cai muito bem.

Iwai, além de filmes, dirige também videoclipes, dramas televisivos, comerciais, além de ser também ator em filmes de amigos, escritor  e músico bissexto.  Nascido em 1963, formou-se em  1987 na Yokohama National University e no ano seguinte entra na indústria do entretenimento para dirigir tudo o que era possível em termos de audiovisual para televisão, já mostrando todo o talento que o tornará um dos grandes artistas japoneses da atualidade. Tanto que em 1993 receberá o prêmio de melhor diretor estreante, dado pela Associação Japonesa de Diretores.

A obsessão pelo cinema, o conhecimento do mundo pop em geral e a afinidade com a música pop e o rock japonês em particular, sem contar o amor pela literatura, fazem de Shunji Iwai um artista ao mesmo tempo inquieto, profundo, realista e aberto a todas as experiências estéticas possíveis e impossíveis. Tanto que ele demorou um pouco para ser aceito por um certo segmento da crítica japonesa, que o via como pop demais, maneirista, estético além da conta, sem contar que causava uma certa ojeriza o carinho do diretor por Shojo Manga (histórias em quadrinhos para meninas) como as de Yoshimoto Banana – sendo o Manga também uma grande influência na obra dele.

Aliás, as jovens e as adolescentes são sempre as protagonistas de seus filmes, sempre interpretadas por grandes cantoras do pop japonês como Cocco, maravilhosa e irresistível em A Bride For a Rip Van Winkle. E a lindíssima Chara em Pic Nic (1996).

Seu último filme, A Bride For a Rip Van Winkle (2016), tem todas as características do estilo Iwai.  Relação de amizade e amor entre duas jovens, a  representação da dura luta pela sobrevivência no Japão, a procura poética e incessante do amor e da felicidade, referência  a textos clássicos da literatura japonesa (aqui, a obra de Kenji Miyazawa: O Trem Noturno da Via Láctea, de 1934). Junto a isso, as referências inusitadas, como, por exemplo, o trabalho das mulheres na indústria pornô nipônica. Sem abandonar alguns temas já abordados por Ozu , Mizoguchi e Kore Eda, como a desagregação da família japonesa e o abandono sofrido pelas mulheres em geral aliado à malandragem e cinismo do homem médio japonês.

O excelente diretor japonês Shunji Iwai ainda não é aclamado no Brasil, como são, por exemplo, os também excelentes Naomi Kawase, Kioyshi Kurosawa e Hirokazu Kore Eda.  Mas é um cineasta a quem o adjetivo genial cai muito bem.

No meio disso tudo estão as imagens influenciadas pela estética videoclipe, mas somada  à tradição japonesa dos ótimos enquadramentos de câmera, o lirismo do céu azul, das nuvens e da imensa e profunda tristeza da cor cinza-claro das habitações suburbanas. Tudo isso gravado em câmera digital (6K) sobre os ombros, editado de modo preciso e rápido.

A Bride For a Rip Von Winkle é uma adaptação do livro do mesmo nome, escrito pelo próprio Shunji Iwai. Tem três horas de duração e é uma história realmente complexa e rica, que faz lembrar a alguns os Bildungs Roman (romances de formação) da literatura alemã, a outros, contos de fada e a outros, ainda, os contos góticos bem na linha de Horace Walpole. Mas, em realidade, trata-se de uma história com forte influência de O Trem Noturno da Via Láctea, do escritor japonês Kenji Miyazawa, que narra o sonho de um garoto em busca de felicidade e amizade: uma viagem onírica e iniciática na qual o protagonista compreenderá a dura realidade da vida.

No filme, a notável atriz Haru Kuroki é Nanami Minagawa, uma professora tímida, ingênua e pura, que, além de dar aulas, trabalha meio período como balconista em uma loja. Um dia conhece um rapaz pela Internet através de um site de encontros, feliz da vida por constatar ingenuamente, com alguma dose de futilidade, que arrumar namorado nesse sistema é como fazer compras no shopping.

Ingênua, se casa com o rapaz. Filha de pais divorciados (a mãe trocou o pai por um rapaz mais jovem), não tem uma família grande que possa apresentar à família do noivo, o que a faz conhecer um personagem malandro, que se oferecerá para conseguir um grupo de pessoas que fingirá ser sua família na cerimônia e na festa de casamento.

No meio disso tudo estão as imagens influenciadas pela estética videoclipe, mas somada à tradição japonesa dos ótimos enquadramentos de câmera, o lirismo do céu azul, das nuvens e da imensa e profunda tristeza da cor cinza-claro das habitações suburbanas. Tudo isso gravado em câmera digital (6K) sobre os ombros, editado de modo preciso e rápido.

Esse personagem mefistofélico fará a vida de Nanami passar de um inferno calmo e rotineiro para um inferno labiríntico cruel e vivaz . Depois de envolvê-la em uma confusão, ele cria um emaranhado de acontecimentos patéticos e melodramáticos que a levam erroneamente a ter certeza da infidelidade do marido. Ela mesma, pobrezinha, é vítima de um mal-entendido que a faz parecer uma esposa infiel, sendo vítima agora da sogra, nada satisfeita em saber que a nora era filha de pais divorciados e cujo resto da família era uma trupe de gente contratada para fingir.

Claro, é escorraçada pelo marido e pela sogra intrigante, mefistofélica e castradora. Fica só e abandonada, sem dinheiro, sem emprego e obrigada, como as heroínas dos filmes de Mizoguchi, a chorar, só, perdida em um desses subúrbios de Tokyo com suas enormes malas com rodinhas e um celular com a bateria pela metade. Linda, como uma fada etérea desterrada, um anjo caído sem céu que nunca esteve no Paraíso.

Depois de algumas peripécias, Nanami se junta àquela mesma trupe de pessoas que se passam por familiares de noivos em cerimônias e festas de casamento. Passa a trabalhar com eles e conhece Mashiro Satonaka, papel vivido pela magnífica cantora do pop japonês Cocco. Uma mulher viva, irresistível, com um “não sei quê” de secreto e misterioso , como um desses personagens saídos de algum conto de Poe ou de alguma produção de Roger Corman.

E quando o filme se torna quase uma obra de David Lynch, ou algo como Animais Noturnos, de Tom Ford, entra mais ainda na esfera da transgressão e da tristeza quase insuportável. Nanami descobre que Mashiro, que parecia ser uma atriz de cinema, é na verdade uma atriz pornô, ótima profissional do ótimo mercado pornô nipônico, que usava o dinheiro ganho para pagar o caríssimo aluguel apenas para fazê-la feliz.

As duas se amam, quase como Ryan O´Neal e Ali MacGraw em Love Story. Vão ambas a uma loja de vestidos de noivas. Posam como duas noivas virginais todas de branco, estão casadas. Passeiam as cônjuges em carro de luxo vermelho-sangue, brisa no rosto de Nanami, que adormece, como em um devaneio adolescente em filme de Sofia Coppola (diretora de As Virgens Suicidas). De volta à casa, agora um apartamento (o aluguel é mais barato), na cama levam adiante a lua de mel: sonho, lágrimas, felicidade finalmente, ternura de verdadeiro amor e beijos. Dormem  abraçadas, prontas para a vida.

 

Trailer
Trailer Virgens Suicidas de Sofia Coppola
Entrevista de Shunji Iwai. Ele menciona os mangás

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