Chacina e colapso nas prisões brasileiras

Maria Luiza Marcilio é historiadora, professora titular de História da USP e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da USP

 20/01/2017 - Publicado há 7 anos
Maria Luiza Marcilio é historiadora, Professora Titular de História da USP e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da USP - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Maria Luiza Marcilio é historiadora, Professora Titular de História da USP e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

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Nestes poucos dias do Ano da graça de 2017, o Brasil e o Mundo viram estarrecidos o massacre brutal de cerca de pelo menos 134 detentos, dentro das prisões do país. Logo nos primeiros dias deste novo ano a sociedade brasileira foi surpreendida pela tragédia da rebelião ocorrida no Complexo Prisional Anisio Jobim, em Manaus, quando 56 presos foram executados e 87 fugiram. Quatro dias depois 33 presos foram mortos em prisão de Roraima, na Penitenciaria Agrícola de Monte Cristo. O presídio tem mais de 1400 internos, muito mais que o dobro de sua capacidade.

O movimento se alastrou. Na Penitenciaria de Alcaçuz, Rogerio Coutinho Madruga (seguindo o veso tipicamente brasileiro de dar nome de políticos e autoridades a cada edifício público) a cadeia do Rio Grande do Norte, inaugurada em 1998, fica a uns 50 km da capital Natal, plantada no meio de dunas, com vista para o mar. Aí eclodiu na madrugada do dia 17, pavorosa rebelião que durou mais de 72 horas e foi difícil de ser controlada. O cenário é belíssimo e contrasta com a arquitetura miserável do local. Seu entorno é feito de areia fofa, propósito expresso para evitar a fuga de presos, mas o que dificulta a chegada de viaturas. O governo liberou verbas para compra de brita e asfalto para abrir as primeiras estradas de acesso ao presídio de carros de agentes e da polícia.

Parte dos internos subiram nos telhados de alguns dos quatro pavilhões, exibiam bandeiras de facções rivais, arrancaram telhas e madeirame dos telhados, que lhes serviam de armas. No final da manhã, foi possível ouvir do lado de fora da prisão, o barulho de tiros e de bombas, vindo da penitenciária. O motim deixou pelo menos 26 mortos. O Presidio está superlotado; onde cabem 500 pessoas, tem muito mais de mil, em cubículos sem ventilação e no calor estafante do Nordeste.

As vitimas foram brutalizadas, decapitadas, mutiladas, esquartejadas. O Presídio teve novo motim em 17 de janeiro, e os detentos montaram barricadas dentro da unidade prisional. As brigas se deram entre as facções rivais: o PCC, com cerca de 400 pessoas e o “Sindicato do Crime”, com quase 600. As Forças Militares tentaram separar as duas facções, evitando mais mortes. O governador prometeu contratar mais 700 agentes penitenciários.

O sistema prisional brasileiro abriga a quarta maior população de presos de todo o planeta: são mais de 600 mil, em sua maioria jovem, de origem humilde, semi alfabetizada e negra. Desse total cerca de 220 mil estão em prisão provisória, sem previsão de quando os juízes irão determinar se são réus ou se podem obter a liberdade.

O sistema prisional do Espírito Santo é tido, como modelo, pois depois da reestruturação feita pelo Secretario da Justiça, em 2016, o número de mortes foi reduzido nas prisões. Alguns o consideram como exemplo de gestão, com a implantação da chamada “arquitetura primoral”. O governo do Estado gastou R$ 500 milhões na reforma e construção dos presídios. Eram 13 unidades em 2005 e são 35 em 2017, com mais 3 previstas para o próximo ano.

O importante, segundo o Secretário da Justiça, é a forma como foram construídos e que segue o modelo arquitetônico dos Estados Unidos, no qual os detentos ficam divididos em três galerias de celas que não se comunicam entre si. O edifício tem também salas especificas, onde os presos podem ter aulas. Escolas funcionam em 29 unidades; podem participar de oficinas profissionalizantes, além de ter espaços para atendimento médico. Esse atendimento material, educacional, jurídico, médico e trabalhista à população carcerária, tem o apoio da população, e é prevista pela lei brasileira.  Essa estrutura permite ao governo aumentar o controle diário e implantar iniciativas de ressocialização que ajudam na diminuição da tensão interna.

Mas, o Espírito Santo é um dos Estados que mais prendem e é muito grande o número de presos provisórios, num encarceramento que mais cresce no país. Seus internos vivem num regime de forte controle, onde se usa da velha tortura policial, para faltas, mesmo as mais leves, como forma arcaica de manter a disciplina e o pavor, pois acredita-se ainda que a tortura impede as rebeliões. É um sistema que não leva em consideração a humanização, e deixa o preso amontoado, em cubículos superlotados, sem ventilação e por 23 horas, num calor intenso. O preso só tem uma hora de banho de sol por dia.

O sistema prisional brasileiro abriga a quarta maior população de presos de todo o planeta: são mais de 600 mil, em sua maioria jovem, de origem humilde, semi alfabetizada e negra

A reação ao massacre dos presos de Manaus, de Roraima e agora do Rio Grande do Norte, tudo em poucos dias, foi imediata na imprensa internacional e nacional, nas lideranças de Direitos Humanos, em organismos de toda parte, como a Human Rights Watch do Brasil que denuncia o fracasso absoluto do Estado brasileiro nesse sentido. Forte foi ainda a preocupação do líder mundial, o Papa Francisco, que afirmou: “eu gostaria de renovar meu apelo para que as instituições prisionais sejam locais de reabilitação social e que as condições de vida dos detidos sejam dignas de seres humanos”. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos também se pronunciou e cobrou investigação e punição dos responsáveis pelo crime hediondo. A OAB anunciou que irá levar o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Outras organizações e jornais de vários países destacaram a pavorosa e chocante chacina.

Pressionado, o Presidente Michel Temer anunciou a construção de mais cinco centros de segurança máxima para enfrentar a crise, além de verbas para os Estados afetados e do envio de Forças Nacionais de Segurança (que não estão treinadas para esse tipo de confronto) para acabar com as rebeliões e chacinas. Temer anunciou ainda a liberação do uso das Forças Armadas para enfrentar o domínio dos presos no governo interno dessas prisões. Mas esses soldados nunca foram preparados para essa função policial.

Polícia e Forças Armadas são organizações de formação e estilos diferentes. O aparato militar nos presídios é um erro constitucional; distorce a objetivo primeiro das Forças Armadas que é a defesa da Pátria. Segundo o Presidente, as Forças Armas vão para inspecionar as prisões e eliminar armas, celulares, etc., mas não agirão junto aos presos (o que seria inconstitucional). No entanto, se o sistema carcerário é incapaz de manter a ordem nos presídios, cabe à segurança dos Estados restabelecer a ordem.

A imprensa nacional começou atribuindo o fato primordialmente às disputas entre lideranças de facções criminosas rivais e de traficantes de drogas e de armas, que dominam as prisões do país. Uma delas é a Família do Norte do Amazonas, que controla a quase totalidade do tráfico de drogas da região Norte do País, região vizinha da Colômbia, Venezuela e Peru; outra estaria ligada ao Primeiro Comando da Capital (PCC), que domina o crime organizado e as cadeias de São Paulo, na rota do tráfico de drogas e de armas que vem do Paraguai e da Bolívia. Inclui-se ainda o Sindicato do Crime, do Rio Grande do Norte, que domina 28 das 32 cadeias desse Estado.

Nova e poderosa facção criminosa nasceu de uma dissidência do PCC, em 2013, e logo dominou o submundo das prisões, buscando o monopólio da venda de drogas, dentro e fora dos presídios, Hoje o Sindicato é o inimigo mortal do PCC. O Rio Grande do Norte entrou na mira do PCC por ser um dos Estados brasileiros mais próximos da Europa, destino final de parte das drogas contrabandeadas pelos paulistas e uma das mais lucrativas rotas do tráfico internacional. Por aí se vê que o massacre dentro das cadeias do Brasil tem tudo a ver com o tráfico mundial de drogas e de armas.

A reação ao massacre dos presos de Manaus, de Roraima e agora do Rio Grande do Norte, tudo em poucos dias, foi imediata na imprensa internacional e nacional, nas lideranças de Direitos Humanos, em organismos de toda parte, como a Human Rights Watch do Brasil que denuncia o fracasso absoluto do Estado brasileiro nesse sentido

Pouco se falou sobre a realidade vivida atrás das grades. E é necessário considerar que não há espaço mais apropriado para a preparação de rebeliões do que o ócio nos presídios, aliado à negligencia de seus administradores, ao permitirem, por ação ou por omissão, que o PCC ou as outras facções passassem a coordenar de fato as cadeias.

As explicações são mais complexas e as causas vêm de muito mais tempo. Não se limitam a essas explicações imediatas. A mais forte explicação está antes de tudo na permanente e na persistente ausência do poder público em fazer cumprir sua obrigação de zelar pelo que ocorre no interior do sistema prisional, na prevenção e na repressão dos delitos nas cadeias, no combate à tortura pelos agentes penitenciários contra os presos, como manda a lei.

A preservação da vida do detento é dever do Estado. A ação de prender e de soltar pessoas é exclusiva dos juízes. E a maioria dos juízes, para facilitar sua tarefa, prende preventivamente a maioria dos flagrantes e lá deixa, sem pressa de verificar cada caso e eventualmente dar ordem de soltura. Colaboram assim para a lotação excessiva das cadeias. Levantamento do próprio Conselho Nacional de Justiça constatou que, na maioria dos Estados brasileiros, os juízes mais prendem do que soltam. Estima-se que haja mais de 200 mil presos em regime de prisão provisória. O fracasso absoluto do Estado nesse sentido viola os direitos dos presos.

A outra explicação está na altíssima superlotação do sistema de encarceramento, não apenas de adultos, mas também do sistema de internamento de jovens menores de idade, contrariando todos os princípios de Direitos Humanos e desrespeitando seriamente o respeito à dignidade da pessoa humana que está sob a custódia do Estado e o direito de ressocialização do preso. A guerra nas prisões é resultante de uma política de encarceramento em massa, que amplifica as péssimas condições das prisões brasileiras. A prisão em flagrante nas ruas sempre foi a regra e a investigação a exceção.

Mas há outra explicação de causa mais profunda: a inexistência da educação de valores éticos e sociais na família e particularmente na escola, em todos os seus níveis. Não há uma educação para a Paz, que se anteponha à tendência perversa que existe em cada ser humano. Inexiste o conhecimento dos Direitos Humanos de cada cidadão, causa pétrea da Constituição brasileira.

Em sentido inverso a imprensa falada, escrita e televisionada ajuda na educação para a violência, ao mostrar predominantemente casos de violência doméstica, de assassinatos, de latrocínios e outros. Cada jornal de noticias vem coberto por casos de violência, com ênfase nas novas formas perversas de agressão ao ser humano ou a seu patrimônio inventadas pelos agressores.

É uma verdadeira escola que desperta, incentiva, multiplica os exemplos novos de delinquência. Foi assim, para citar aqui alguns poucos exemplos, o relato do primeiro seqüestro relâmpago; ou da descrição detalhada e didática da primeira explosão de caixa eletrônica (e seu resultado estimulador de resgate imediato de milhares e milhares de dinheiro vivo de notas monetárias), do roubo em estradas de caminhões com cargas preciosas. Desses primeiros poucos exemplos que aqui lembramos, originaram-se milhares de novas violências, multiplicando-se as prisões provisórias.

O governo, nacional, regional e local abandonou de há muito, abandona ainda hoje, na periferia e nas favelas das cidades, parte considerável de sua sociedade. Está ai o reduto de grupos de traficantes de drogas e de armas, donos desses espaços. Não há praticamente programa político eficaz, nem forças policiais que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. A desigualdade social injusta pode provocar, por parte dos excluídos do sistema político, social e econômico, reações de violência. Assim como o bem tende a difundir-se, também o mal, que é a injustiça, tende a expandir-se e a minar silenciosamente as bases de qualquer sistema político e social. Defender privilégios, silenciar frente à corrupção, alimentar a sede de vingança, segregar os condenados, contribuir para o desemprego é envenenar nosso próprio futuro.

Levantamento do próprio Conselho Nacional de Justiça constatou que, na maioria dos Estados brasileiros, os juízes mais prendem do que soltam. Estima-se que haja mais de 200 mil presos em regime de prisão provisória. O fracasso absoluto do Estado nesse sentido viola os direitos dos presos

É preciso ter metas claras para a redução da população prisional. E o sistema carcerário não pode violar os direitos fundamentais do preso. Na democracia em que vivemos o condenado, o preso, não tem o direito de votar. Estão na mesma situação que há poucas décadas atrás estavam os analfabetos, as mulheres, os religiosos, categorias que precisaram de longas lutas para obter o direito de cidadania.

Como qualquer um reconhece, o preso que sai da cadeia é mais perigoso do que quando entrou. Na realidade, o presídio é a escola que está a serviço do tráfico de drogas e de armas. Assim, quanto mais se prende mais se fortalece o crime no sistema carcerário.

Segundo a Pastoral carcerária do Brasil, o que o preso de todas as prisões mais pede para ler é o Código Penal, mas isso é proibido em quase todos os cárceres do país. Eles não podem conhecer a lei que mostra quais são seus direitos. O temor dos agentes penitenciários é que esse conhecimento possa desencadear rebeliões internas.

Como o próprio Conselho Nacional de Justiça reconhece, 44% dos presos no País são provisórios. Isso em grande parte por serem pobres sem condições de pagar um advogado que os defenda pessoalmente, descubra sua situação, como manda a lei.

A Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994, expedida pela Presidência da República, por meio de sua Casa Civil organiza a Defensoria Pública da União, extensiva aos Estados e Municípios. A Defensoria Pública diz a Lei “é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, como expressão virtual do regime democrático, fundamental, da orientação jurídica, da promoção dos direitos humanos e da defesa em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”. Essa Lei foi modificada em 2009 (Lei Complementar 132/2009) que alterou substancialmente a lei orgânica da Defensoria Pública da União de 1994. “Cabe aos Defensores Públicos Federais defender a primazia da dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais e a prevalência e efetividade dos direitos humanos dos necessitados em todos os graus”.

Mas o número de defensores públicos é extremamente pequeno face ao número dos que deles necessitam. A ANADEP e o Ipea lançaram, em março de 2013, uma pesquisa inédita que comprova a falta de defensores públicos em 72% das comarcas brasileiras, ou seja, a Defensoria Pública só está presente em 754, das 2.680 comarcas distribuídas em todo o país.

De acordo com a pesquisa, dos 8.489 cargos de defensor público criados no Brasil, apenas 5.054 estão providos (59,5%). Além disso, Paraná e Santa Catarina, os últimos estados a criarem suas Defensorias Públicas, em 2011 e 2012, respectivamente, ainda não têm o órgão efetivamente implantado, assim como Goiás e Amapá.
Os únicos estados que não apresentam déficit de defensores públicos, considerando o número de cargos providos, são Distrito Federal e Roraima; os que possuem déficit de até 100 defensores públicos são Acre, Tocantins, Amapá, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Rondônia e Sergipe. Os estados com maiores déficits em números absolutos são São Paulo (2.471), Minas Gerais (1.066), Bahia (1.015) e Paraná (834). O déficit total do Brasil é de 10.578 defensores públicos. Mais uma vez fica registrada a ausência dos governos na defesa dos mais pobres e necessitados.

Concluímos este pequeno escrito com as palavras do Papa Francisco em sua Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz, em 1º de janeiro de 2014: “No coração de cada Homem e de cada Mulher habita o anseio de uma vida plena que contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em que não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar”.

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