Cidades, crise climática e o pacto federativo brasileiro

Por Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP

 14/03/2023 - Publicado há 2 anos

Em muitas cidades, onde vive a maioria da população mundial, a situação tende a se tornar mais crítica, já que parte da população urbana do mundo vive em condições precárias e, por isso, não são consideradas as principais candidatas a vítimas de eventos extremos. Nesse contexto, pergunta-se: como as cidades brasileiras podem se preparar para as mudanças climáticas? Esta é uma pergunta para a qual se ensaiam respostas há quase três décadas. Através de grandes eventos de repercussão mundial, como as publicações de relatórios do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) e as discussões nas Conferências das Partes (COPs), cientistas vêm avisando os governos da maioria dos países – via Organização das Nações Unidas – sobre a intensificação e o perigo dos eventos extremos.

Algumas cidades vêm se planejando e investindo no bem-estar e na preparação para as mudanças climáticas. Entre elas estão cidades globais bem conhecidas, como Londres, Nova York, Paris e Tóquio. Não é à toa que estas cidades estão no topo do ranking das cidades globais. Elas sempre se preparam em vários aspectos e com uma visão sistêmica, ou seja, levam em consideração as pessoas e contemplam o aperfeiçoamento constante das políticas públicas urbanas.

A preparação sistêmica das cidades brasileiras para enfrentar esse desafio já deveria ter sido iniciada há décadas. Mas isto vem ocorrendo a conta-gotas e, infelizmente, cada vez que um novo evento extremo se abate sobre uma ou um grupo de cidades no Brasil, vidas são perdidas e propriedades danificadas.

Sem discorrer aqui sobre como cada cidade deve responder e cada evento extremo que possa ocorrer, trago uma visão mais ampla, que na minha opinião merece ser considerada em conjunto pelos entes federativos e a sociedade civil. Em nosso país, o pacto federativo é fundamental para responder à crise climática. O alto índice de federalização faz com que as nossas cidades sejam muito frágeis e, portanto, vulneráveis a eventos climáticos crônicos e extremos. Temos cidades costeiras que já sofrem os efeitos do aumento no nível do mar e de tempestades destrutivas. Algumas já começaram a se preparar. No Brasil, Santos e Recife são bons exemplos, que já vêm traçando planos para se adaptar ao futuro.

Quando consultado, Ricardo Young, ex-vereador em São Paulo e atualmente presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade, disse: “A crise climática precisa ser enfrentada a partir da maior resiliência dos territórios. Em outras palavras, o grau de adaptabilidade e ajuste de cada território às ameaças climáticas necessita de olhar sistêmico, melhor ciência e de soluções baseadas na natureza para que se perenizem. Há que haver uma maior autonomia dos entes de forma que possam desenvolver competências específicas ligadas à sua realidade local. E estas competências passam pela capacitação extraordinária dos agentes públicos e autonomia política, administrativa e financeira para agir”.

Quando eventos extremos afetam cidades inteiras de forma drástica, como foram os casos de Petrópolis no Rio de Janeiro e do Litoral Norte de São Paulo no Carnaval de 2023, o grande número de perdas (de vidas e de propriedades) chama a atenção da sociedade, que passa a exigir das autoridades medidas urgentes para que não volte a acontecer.

Um problema é que esses eventos são diferentes para cada cidade. Um exemplo de contraste: enquanto o litoral paulista era arrasado pela maior tempestade no Brasil de que temos notícia, cidades no Rio Grande do Sul estavam precisando se adaptar à seca. Nesses dois casos, as cidades estão distantes entre si, mas mesmo municípios relativamente próximos, até vizinhos, como São Paulo e Santos, por exemplo, podem precisar de planos bem diferentes de adaptação aos eventos extremos. Pode-se dizer que cada um dos 5.570 municípios brasileiros, provavelmente, seja único em como lidar com efeitos das mudanças climáticas. Porém, em certos casos, é possível agrupá-los sob eventos regionais. Em outras palavras: escala é importante ao mesmo tempo que as especificidades também.

A política tem um papel fundamental, mas no nível dos municípios precisa de mais apoio. Mesmo com mandatos dados pelo povo, vereadores precisam lutar arduamente para conseguir fazer com que as cidades tenham o mínimo de protagonismo. Sobre este tema, consultei o ex-vereador Gilberto Natalini, que esteve na Câmara Municipal de São Paulo por 20 anos (cinco mandatos) e a resposta foi a seguinte: “As cidades brasileiras cresceram de forma não planejada e desorganizada. Não estão preparadas para os eventos climáticos extremos. Temos pressa para corrigir isso. Será preciso criar uma via direta para enviar e aplicar recursos e corrigir essa realidade”.

O ponto que eu gostaria de levantar aqui tem um pé na generalização e outro no extremamente específico e local. Sem um olhar para um maior equilíbrio entre os entes federativos, seja no investimento, seja no planejamento ou na ação, não há como garantir que eliminaremos totalmente as mortes e os prejuízos financeiros que virão com o incremento dos efeitos das mudanças climáticas sobre as cidades.

Para que as cidades possam se preparar melhor, é preciso que cada uma delas se torne capaz de avaliar e classificar seus próprios riscos e em seguida planejar como diminuí-los ao máximo. Para poder planejar adequadamente é crucial conhecer a realidade local. Só que, mesmo conhecendo-a, ainda será necessário fazer planos e colocá-los em ação. Arrisco dizer que a grande maioria dos municípios brasileiros não tem o financiamento e o pessoal treinado para avaliar adequadamente os riscos e montar planos bem fundamentados para enfrentar as adversidades num futuro bem próximo.

Estamos, portanto, com um enorme problema nas mãos. No Brasil, atingir esses objetivos requer transpor a barreira exercida pelo pacto federativo, que não provê os meios financeiros necessários aos municípios para um planejamento adequado.

Uma proposta seria uma ação, no nível da federação, partindo provavelmente do parlamento, que flexibilizasse o pacto federativo de forma a permitir que as cidades possam se planejar adequadamente o mais rápido possível. O governo federal poderia, por exemplo, repassar verbas diretamente para os municípios ou grupos deles. O Ministério das Cidades poderia trabalhar junto aos Estados e às cidades para prover meios para que elas possam formular planos interdisciplinares concretos e factíveis, com visão local e cientificamente embasada, que permitam aumentar a resiliência das cidades a eventos crônicos e extremos das mudanças climáticas.

Um aspecto importante a considerar é a infraestrutura da cidade e a sua resiliência a impactos de grande magnitude. Um erro comum de interpretação por parte do poder público e da sociedade é achar que a preparação de uma cidade é um gasto de dinheiro muito grande e que é melhor deixar para depois. Já está claro para os especialistas em mudanças climáticas que, se deixarmos para depois, o preço para adaptar é multiplicativo e não somatório.

Resumindo, preparar cidades exige:
1) compreender a situação local (posição geográfica, situação socioeconômica, topografia);
2) criar uma forma de flexibilização do pacto federativo para que as cidades possam se planejar;
3) prover orçamento para treinamento de pessoal e planejamento, nessa ordem;
4) agir agora e não esperar a frequência de eventos extremos aumentar.

Não temos como negociar com a crise climática. Não é uma questão de otimismo ou pessimismo. É simplesmente uma questão científica. Negá-la só aumentará a probabilidade de perdermos mais propriedades e mais vidas.

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