O papel das Forças Armadas

Por José de Paula Ramos Jr., professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 08/02/2023 - Publicado há 1 ano
José de Paula Ramos Jr. – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

 

Sabe-se que o alto comando das Forças Armadas é ideologicamente conservador. Embora não deva ter ação política, historicamente interferiu nessa área, chegou a tomar o poder e impor uma violenta ditadura de direita que durou duas décadas.

Com a redemocratização do País e sob as diretrizes da Constituição Cidadã de 1988, os militares voltaram às casernas e mantiveram uma atitude discreta e de acordo com as funções constitucionais que lhes cabem, mesmo em períodos de grave crise institucional, como no caso do governo Collor.

As Forças Armadas passaram a respeitar o resultado das eleições e a alternância no poder. Exemplarmente valorizaram o princípio de hierarquia, prestaram continência aos comandantes supremos das Forças Armadas, os civis eleitos presidentes da República, respeitando a vontade popular no exercício do voto em eleições democráticas.

O exercício do papel constitucional das Forças Armadas foi impecável desde a redemocratização do País. A coesão demonstrada, porém, não significa inexistência de divergências na corporação militar. Algumas vezes elas vêm a público, como em certos posicionamentos públicos do Clube Militar, e de militares saudosos da ditadura, alguns deles na reserva e exercendo cargos políticos, nas esferas municipais, estaduais e federal.

Porém, eleito presidente em 2018, Jair Bolsonaro promoveu uma ostensiva militarização da República, com mais de mil nomeados para elevados cargos, com salários dos mais bem pagos pelo governo. Desviados de suas funções constitucionais, atuaram como agentes políticos, a exemplo da participação do general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde de triste memória no governo Bolsonaro, em comício eleitoreiro no Rio de Janeiro.

O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, recusou intervenção política militar desejada por Bolsonaro. O ministro foi demitido. Um dia após a demissão, o ministério anunciou (terça-feira, 30/3/2021) que os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica também iriam deixar seus cargos, desencadeando a mais grave crise militar após a democratização. Deixaram os cargos Edson Pujol (Exército), Ilques Barbosa Junior (Marinha) e Antonio Carlos Bermudez (Aeronáutica). Pujol afirmara que o papel dos militares não é se envolver em política. “Não queremos fazer parte da política, muito menos deixar ela entrar nos quartéis.”

O general Walter Braga Netto, que estava até então na Casa Civil, substituiu Azevedo e nomeou para as pastas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, respectivamente, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, almirante Almir Garnier Santos e brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, este último notório bolsonarista sobre quem paira a suspeita de defender um golpe de Estado, que impedisse a posse do presidente Lula da Silva.

Vieram as eleições, vencidas por Lula, e os comandantes das pastas militares mostraram-se dispostos a demitirem-se para não participar da transmissão do poder, mas foram dissuadidos desse intuito. Bolsonaro, porém, se evade para os Estados Unidos e não transfere a faixa presidencial ao eleito pelo povo, o que é feito por representantes da sociedade numa comovente cerimônia histórica.

Em 30/12/2022, o general Júlio Cesar de Arruda é nomeado comandante interino do Exército. Permanece pouco mais de 20 dias no posto, exonerado por suspeita de conivência inoperante no episódio do gravíssimo ataque de vândalos (terroristas) às sedes do Tribunal Superior de Justiça, Congresso Nacional e Palácio do Planalto, em 8/1/2023, numa tentativa de golpe de Estado.

Configurada a quebra de confiança, o general Arruda é substituído pelo general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, cujos posicionamentos públicos são indício de suas sólidas convicções democráticas.

Isso é auspicioso, mas não encobre divergências ideológicas na corporação. Há oficiais da ativa e da reserva saudosos dos anos de chumbo em vigor durante a ditadura militar, o que vem a ser um risco para a prosperidade do Estado democrático de direito, inaugurada pela Constituição Cidadã de 1988. Missão de grande importância e mérito seria a de superar a falta de coesão, a favor de uma formação que prestigiasse o espírito democrático nas Forças Armadas. Isso não se obtém a curto prazo, mas é tarefa para a educação, sobretudo do oficialato. É necessário que as Forças Armadas não só enfim reconheçam, mas ensinem em suas escolas que o movimento de 1964 foi um golpe de Estado que impôs uma ditadura ao País, que perseguiu, prendeu, torturou e assassinou tanta gente, como nos casos emblemáticos do estudante Alexandre Vannucchi Leme, do líder operário Manoel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog.

Só assim, poderemos ter esperança de que as Forças Armadas obtenham coesão em torno dos ideais democráticos, favorecendo os princípios de hierarquia e disciplina tão desejáveis no respeito inarredável da Constituição do Estado democrático de direito.

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