Essa associação direta entre linguagem figurada e linguagem literária é, porém, um equívoco comum, inclusive entre os que sugerem – honestamente ou não – prestigiar a arte literária. Portanto, em nome da verdade, convém distinguir as duas coisas.
Metáforas da vida cotidiana
No já distante ano de 1980, os linguistas George Lakoff e Mark Johnson publicaram o celebrado Metaphors we live by (ou Metáforas da vida cotidiana, tal como publicado em português). Em linhas gerais, a obra aborda como o próprio desenvolvimento da linguagem se deve à capacidade humana de criar metáforas.
Adotando uma perspectiva cognitivista, os estudiosos mostram que a metáfora não está apenas na expressão linguística, mas na nossa própria concepção do mundo. Para os autores, utilizamos metáforas para, por meio de nossa experiência concreta, tornar tangíveis noções mais abstratas.
É o que ocorre, por exemplo, com a nossa forma de conceptualizar a ideia de relação amorosa. Segundo os autores, quando se diz que duas pessoas apaixonadas resolveram “andar juntas pela estrada da vida”, ou que “seus caminhos se cruzaram”, ou que, após uma desilusão, “cada uma tomou seu próprio rumo”, toma-se como referência um elemento da nossa experiência concreta (o deslocamento ao longo de uma trajetória) para conceptualizar uma noção mais abstrata (a relação amorosa de um casal).
Desse modo, a refinada teoria linguística de Lakoff e Johnson exige reconhecer que as metáforas (bem como outras relações figuradas) não se limitam ao texto literário, o que não significa dizer que elas não podem ser parte dele. Nesse sentido, o que diferenciaria uma metáfora literária de outra, ordinária?
Jakobson e a função poética
Com seu olhar detido sobre a função poética da linguagem, o linguista russo Roman Jakobson (1896-1982) nos ajuda a entender que figuras de linguagem não são sinônimo de literatura. Em seu ensaio “Linguística e poética”, Jakobson, além de estabelecer uma alentada sistematização das funções da linguagem, propõe ainda que não ignoremos sobreposições existentes entre elas.
Entre outros exemplos, ele analisa o slogan político “I like Ike”, que fez parte da campanha pela eleição de Eisenhower – 34º presidente dos EUA (1953-1961). Para Jakobson, é inegável que o enunciado se vale de recursos expressivos (como assonância e aliteração), que são sim elementos associados à função poética. No entanto, isso não faz o texto publicitário, em que predomina a função apelativa da linguagem, integrar os gêneros literários. Antes, o que vemos é um enunciado com claras funções persuasivas (no caso, eleger um candidato) apropriar-se de estratégias retóricas associadas à literatura.
Linguagem figurada e persuasão: o valor da expressividade
Não é por fins meramente estéticos que o discurso político se vale da linguagem figurada. Expressões não literais podem servir para tornar acessível a compreensão de ideias mais abstratas ao público (o que ocorre quando se compara a formação de um ministério à composição de um time de futebol, por exemplo), ou ainda para produzir alto impacto na audiência, atribuindo assim maior relevância ao conteúdo veiculado. A declaração de que o indivíduo vacinado poderia se transformar em um “jacaré” parece incluir-se em ambos os critérios.
Desse modo, valendo-se de um recurso expressivo, o presidente conseguiu dar destaque à tese de que as vacinas poderiam provocar efeitos colaterais imprevisíveis, indesejáveis, extremos e irreversíveis – tal como ocorreria com alguém que se transformasse em um réptil tido como perigoso. O uso da linguagem figurada, nesse caso, foi uma poderosa arma não apenas para desencorajar a vacinação, como também para promover negacionismo e teorias conspiratórias. É difícil, portanto, concluir que se trata de “literatura portuguesa”. Menos ainda de boa literatura.