Guerrilhas judiciais

Por José Eduardo Campos Faria, professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP

 24/08/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 29/08/2022 as 12:26

A aprovação da anistia aos policiais militares que participaram do massacre na Casa de Detenção, em 1992, pela Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, foi recebida como vergonhosa pela opinião pública. De fato, moralmente a anistia é abjeta.

Contudo, não se pode relevar outro ponto – este ocorrido no Judiciário, que acaba de manter a condenação dos réus. Trata-se da morosidade com que o caso tramitou nos tribunais. Ela decorreu da estratégia de defesa dos réus, que, paradoxalmente, foi inspirada em técnicas concebidas por entidades de assessores jurídicos de movimentos populares na defesa de direitos humanos. Criadas nos anos de 1980, duas organizações merecem destaque.

Uma é o Instituto Apoio Jurídico Popular, do Rio de Janeiro, que desenvolveu um programa de formação técnico-jurídica para líderes de movimentos rurais. Entre suas iniciativas, a entidade lançou cartilhas intituladas Direito Insurgente, questionando os direitos civil e penal. Uma delas, Posse x Propriedade: a luta de classes na questão fundiária, indagava: “Se, pelo Código Penal, aquele que comete um furto movido pela necessidade de sobrevivência não pode ser condenado, por que também não é aceito aquele que ocupa um terreno movido pela necessidade?”.

A outra entidade, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, foi criada por estudantes de direito vinculados à Arquidiocese de Olinda, na época de dom Helder Câmara. O objetivo era preparar advogados para assessorar movimentos sociais urbanos. Também editou cartilhas de conscientização e, segundo uma delas, “a assessoria jurídica popular não deve adotar postura passiva. Ela não é só o receptor dos desejos e das necessidades comunitárias. Também desempenha papel ativo de reflexão acerca das questões de ordem política ligadas à luta comunitária”.

Ambas as entidades se destacaram por suas experiências de luta, nas quais aprenderam a usar o rol de prazos e recursos do direito processual para acelerar ou retardar a tramitação de ações contra líderes rurais e comunitários. Elas desenvolveram estratégias de resistência e técnicas para retardar intimações e fazer com que ações de reintegração de posse de terras ocupadas se arrastassem até as próximas eleições, quando então impetravam recursos para acelerar o julgamento. Como sabiam que os tribunais tendem a acolher as ações de reintegração de posse impetradas pelos proprietários, os líderes das ocupações, assessorados por esses advogados, valeram-se de uma situação de fato – a conversão das ocupações em comunidades – para constranger governadores. Alguns, que disputavam a reeleição ou o Senado, cederam, desapropriando áreas ocupadas e legalizando a posse dos ocupantes.

Essa estratégia se expandiu para todo o País. Uma das cartilhas reproduz o depoimento de um advogado sobre como trabalhadores podem se valer dos prazos e recursos nos casos de ocupantes casados que são réus em ações possessórias. “Logo na audiência da justificação, apresentamos a certidão de casamento e lembramos que se trata de uma ação real, o que ninguém tem certeza. Mas o juiz não quer nem discutir, adia a audiência e manda citar a mulher. Por sua vez, ela já largou o marido e foi embora para São Paulo. Aí embaralha tudo.”

Ao justificar essa guerrilha judicial, advogados engajados lembram que o uso do direito não significa avalizar leis injustas. Alegam que desprezar a via jurídica como solução para certos problemas é desperdiçar oportunidades de ganhos reais. E afirmam que determinadas leis, apesar de impostas pelas “classes dominantes, favorecem lutas populares”.

A expansão dessas estratégias têm sido objeto de teses de mestrado e doutorado que mostram como elas desbordaram de uma advocacia engajada pelos direitos humanos para a advocacia profissional que defende corporações policiais envolvidas em massacres. E o que se descobriu agora é que elas também vêm sendo usadas na defesa de réus vinculados ao narcotráfico e às milícias.


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