Livro traz novo olhar sobre o pensamento de Benjamin Constant

Obra mostra autor preocupado com a tensão entre o respeito à lei e a defesa do regime representativo

 13/01/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 14/01/2022 as 17:34
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‘‘Se Constant é um autor que deve nos interessar, é menos porque apresentaria soluções diretamente aplicáveis hoje em dia e mais porque percebeu o problema e, dessa forma, nos leva a colocar questões a respeito dele’’, afirma Felipe Freller, autor de Quando É Preciso Decidir – Fotomontagem do Jornal da USP com imagens de Wikimedia Commons e Pixabay

 

Benjamin Constant (1767-1830) é considerado por muitos um dos ‘‘pai fundadores’’ do liberalismo político. Tendo vivido e atuado em uma França que foi palco da Revolução de 1789, da ascensão e queda de Napoleão Bonaparte e da Restauração dos Bourbon, produziu sua obra teórica chacoalhado pelos desafios e contradições da política prática, atravessada por repúblicas, impérios e monarquias constitucionais. Até agora, a defesa intransigente da liberdade individual e a condenação da arbitrariedade dos governantes foram as dimensões mais exploradas de sua produção.

O livro Quando É Preciso Decidir: Benjamin Constant e o Problema do Arbítrio, de Felipe Freller, não pretende desmontar as interpretações clássicas sobre o pensador franco-suíço, mas oferecer uma visão mais prismática de suas ideias. Para isso, ajusta o foco para um aspecto pouco estudado na obra de Constant: o tratamento que o autor dá à questão da arbitrariedade na política, a tomada de decisões que não seguem a letra da lei.

O livro é resultado da tese de doutorado de Freller, defendida em 2020 no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, mediante convênio de dupla titulação, com bolsa financiada pela Fapesp, sob orientação da professora Eunice Ostrensky e coorientação de Fréderic Brahami. Em 2021, o trabalho foi agraciado com o Grande Prêmio CAPES de Tese Oscar Niemeyer na área de Humanidade, além de ter recebido menção honrosa na 10a edição do Prêmio Tese Destaque USP, na área de Ciências Humanas.

Felipe Freller – Foto: Reprodução/UFBA

De acordo com Freller, graças a textos como A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos (1819), Constant entrou para o cânone do pensamento político como um teórico da liberdade moderna. Esta seria o espaço no qual os indivíduos podem agir sem interferências arbitrárias da autoridade, a modernidade sendo o reino da autonomia individual. Os intérpretes de Constant deram ênfase a essa liberdade individual e suas condições políticas – o império das leis, o Estado de direito e a limitação da soberania.

A partir dos anos 1980, entretanto, os estudos sobre o autor começaram a entender essa liberdade individual atrelada a um ideal democrático de participação política e engajamento dos cidadãos, afirma Freller. Esse ideal seria, justamente, um dos pré-requisitos da liberdade individual. É nessa tradição que o livro recém-lançado se situa, direcionando seu olhar para o que Freller chamou de problema do arbítrio.

Termo intrinsecamente pejorativo, arbítrio remete à ideia de um poder ilimitado, acima das leis, tirânico e despótico. Nas análises anteriores, o arbítrio em Constant era entendido apenas como um objeto de crítica, negado de princípio como um processo que levaria à tirania. Antes dele, explica Freller, era quase consenso no pensamento político que, em situações excepcionais, as leis poderiam perder sua validade e certo grau de arbitrariedade se tornar necessário. Constant é visto normalmente como um autor que nega isso e reconhece a lei geral e impessoal como a única autoridade.

“Não é que eu negue a preocupação de Constant com o Estado de direito e a sua crítica do arbítrio”, comenta Freller. “Mas eu tento contar que, na minha interpretação, ele foi percebendo, ao longo do tempo e à luz de eventos traumáticos, que há situações nas quais algum grau de arbítrio é necessário na experiência política. Não se trata de uma simples recusa, mas do enfrentamento de uma questão: como incorporar o arbítrio sem que ele degenere em tirania?”

Constant não oferece uma solução definitiva para o problema, conta Freller. O próprio autor reconhecia que a tendência inevitável do arbítrio é se tornar tirânico. Contudo, ao longo de sua produção, elaborou algumas ideias e propostas que ainda hoje interessam à teoria política quando se pensa a incompletude do Estado de direito. É o caso, por exemplo, do poder neutro, uma tentativa de incorporar o arbítrio no sistema institucional de maneira controlada. Uma ideia que teve bastante aceitação no século 19, chegando inclusive a figurar na Constituição brasileira de 1824 sob o nome de Poder Moderador.

Ao longo de sua produção, outros desdobramentos da questão também surgiram, conforme comenta Freller. “Constant foi generalizando o problema do arbítrio, não se contentando em simplesmente alocá-lo em um poder constitucional específico. Ele passa a pensar como o arbítrio precisa ser generalizado no corpo político.” Assim, explica Freller, Constant ponderava que indivíduos comuns, dotados ou não de funções na aplicação da lei, deviam ter a capacidade de decidir a respeito da justiça da própria lei. “Eles não podem ser simples aplicadores automáticos da lei, precisam ter capacidade de decisão, porque a própria aplicação automática da lei é um perigo, seja no caso de leis injustas, seja no caso de leis que, mesmo sendo justas, seriam injustas em sua aplicação a um caso particular.”

De todo modo, continua Freller, o que o autor franco-suíço faz é mais apresentar problemas do que oferecer soluções, reafirmando que não há solução definitiva para a garantia das liberdades individuais em um governo representativo. “O que ele está dizendo é que é possível a perda da liberdade pela própria aplicação das leis e, nesse sentido, deve-se reconhecer o papel do arbítrio”, explica. “Mais do que uma solução para o problema de como impedir o arbítrio de se tornar tirania, o que Constant diz é que é preciso reconhecer o papel incontornável do arbítrio e estar atento para o perigo de sua transformação em tirania. Mas ele próprio não pode ser inteiramente descartado, porque as leis não são suficientes para garantir a liberdade.”

Esse reposicionamento do olhar sobre a obra de Constant, conforme conta Freller, se estruturou a partir da tentativa de entender o pensamento do autor como tensionado pela maneira como Constant recebeu e interveio nos eventos políticos de sua época. Freller buscou ver o autor como alguém que postula problemas a partir da própria experiência histórica, em vez de encará-lo como um pensador que teria uma doutrina coerente.

A abordagem de Freller é inovadora dentre os estudiosos de Constant. Isso porque propõe enxergar a relação entre teoria e mudanças de posição na trajetória do autor franco-suíço sem tentar justificar contradições ou negá-las. Tendo participado ativamente na vida política francesa, Constant se viu ora na defesa, ora na crítica de governantes e de suas ações, recebendo mesmo a alcunha de ‘‘o inconstante Benjamin’’ de seus detratores contemporâneos.

Dentre suas viravoltas políticas estão a defesa e posterior recusa do golpe do 18 Frutidor, ocorrido em 1797 durante o governo do Diretório, no qual o golpe de Estado patrocinado pelos republicanos tenta conter uma ameaça contrarrevolucionária dentro do próprio governo representativo. E também a relação com Napoleão: apesar de Constant considerá-lo um tirano usurpador em um primeiro momento, o autor viria a contribuir para a elaboração da Constituição de seu governo dos 100 dias.

Mesmo que o próprio Constant sempre tenha procurado rebater as críticas, explica Freller, justificando que sua fidelidade não era a um homem ou a um partido, mas a princípios políticos, sua imagem ficou marcada como a de um político inconstante. Para dar conta disso, a literatura contemporânea elaborou duas explicações. A primeira tentou mostrar que, no fundo, não havia incoerência em suas mudanças de posição. Já a segunda reconheceu esse descompasso entre teoria e prática, mas afirmou que suas ações seriam mais desvios de ordem biográfica, explicáveis pela psicologia ou mesmo pela política, sem grandes contribuições para sua teoria.

Freller, em seu livro, não procura negar esse quebra-cabeça entre um pensamento sistemático e mudanças de posição. Em vez disso, tenta levar mais a sério as tomadas de posição de Constant. “Eu procuro mostrar que há de fato tensões, não acontece uma simples aplicação coerente da teoria à prática. Não é algo simplesmente externo à teoria, é algo que repercute sobre a teoria.”

No caso do golpe do 18 Frutidor, prossegue Freller, Constant se viu obrigado a pensar como seria possível realizar algo análogo a esses golpes de Estado necessários para a defesa da liberdade – já que grupos políticos inimigos da liberdade podem chegar ao poder pelas próprias regras do jogo do regime representativo – sem o recurso ao golpe violento. “A teoria até então negava totalmente o arbítrio e, na prática, ele é obrigado a abraçá-lo, ainda que de modo pontual. Isso leva a teoria a precisar dar respostas. O que eu procuro mostrar é que não foi nem uma simples aplicação da teoria nem um evento externo à teoria, e sim algo que levou Constant a pensar nesse problema: como incorporar o arbítrio de modo não tirânico.”

A crítica de Constant de que as leis não são suficientes para garantir as liberdades poderia ser vista como indício de sua adesão ao liberalismo e uma crítica ao republicanismo. Enquanto os republicanos pensariam na liberdade como constituída a partir das leis, Constant enxergaria a liberdade no domínio do privado. Freller, contudo, procura pensar na questão de um modo diferente.

“A meu ver, não se trata de que Constant está contra o império das leis”, explica. “A questão é menos pensar se Constant se opõe ou não a esse império e pensá-lo como alguém que tensiona e mostra suas insuficiências e limites sem contudo rejeitá-lo. Ou melhor, sempre defendendo-o.” Assim, para Constant é preciso o juízo crítico dos cidadãos para que as leis não sejam aplicadas de modo cego e tirânico. “No fundo, sua grande aposta é na força de uma cidadania crítica e de uma opinião pública pujante que se vê obrigada a tomar decisões que podem não estar baseadas nas leis.”

Discussão que segue atual e encontra terreno no Brasil de 2022. Segundo Freller, Constant é interessante para se pensar o País nessa dupla dimensão da crítica do arbítrio e das maneiras pelas quais ele pode ser incorporado no sistema político. “Ele nos alerta para os perigos de todas as tentativas de se desviar da lei, mesmo que com bons objetivos”, comenta, lembrando a discussão trazida pela Operação Lava-Jato sobre o conflito entre punir criminosos e o desvio das garantias legais.

Além disso, a própria ameaça à democracia é outro tema sensível à análise do autor franco-suíço, já que ele próprio vivenciou os eventos que culminaram no golpe do 18 Frutidor, uma tentativa de afastar grupos contrarrevolucionários do poder. Constant oferece a percepção de que o regime representativo pode ser subvertido por dentro quando grupos contrários a esse regime político vencem eleições. “Constant está mostrando que a simples engrenagem institucional do regime constitucional e representativo é insuficiente para enfrentar essa ameaça. É preciso alguma intervenção que não seja uma simples aplicação da lei.”

Capa do livro – Foto: Divulgação

É a exortação para que os cidadãos não abdiquem da vigilância crítica sobre os poderes e que não confiem cegamente no funcionamento automático do regime representativo. “Todas essas formas pelas quais Constant nos diz que a aplicação da lei é insuficiente para frear os perigos que corre a ordem constitucional e representativa são atuais”, pondera Freller. “Eu diria que é justamente o que vivemos no Brasil, com um governo de extrema direita que não rompeu definitivamente com o marco legal da democracia e do Estado de direito, que joga dentro do próprio jogo democrático. Deter os perigos que esse tipo de governo representa envolve, claro, a aplicação da lei, mas não só. Envolve tanto a esfera institucional quanto a esfera da mobilização da opinião pública e dos cidadãos, envolve tomadas de decisões e avaliações da contingência política das quais a simples aplicação do quadro legal não dá conta’’, pontua.

Quando É Preciso Decidir: Benjamin Constant e o Problema do Arbítrio, de Felipe Freller, Editora Appris, 322 páginas, R$ 66,00.


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