A caixa de Pandora, uma metáfora para o mundo de hoje?

Por André Francisco Pilon, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP

 16/11/2021 - Publicado há 2 anos
André Francisco Pilon – Foto: ResearchGate GmbH

 

 

A “caixa de Pandora” é uma metáfora usada para caracterizar ações que, menosprezando o princípio de precaução, desencadeiam consequências maléficas, terríveis e irreversíveis. O mito de Pandora origina-se nos poemas épicos de Hesíodo (a Teogonia), escritos durante o século VII a.C., considerados uma das mais antigas versões sobre a origem do Universo.

Zeus deu a Pandora, como presente de casamento, uma caixa (na Grécia antiga, um jarro), mas avisou-a para nunca a abrir, pois seria melhor deixá-la intocada. A vontade de abri-la superou qualquer precaução: coisas horríveis voaram para fora, incluindo ganância, inveja, ódio, dor, doença, fome, pobreza, guerra e morte. Hoje em dia, a caixa de Pandora continua sendo aberta, não por pessoas desavisadas, mas por personagens que prestam serviços em nome da ciência, da política e da economia.

No entanto, setores governamentais, os meios de comunicação de massa, abdicaram do debate público no tocante aos riscos representados pela “caixa”.

Aí estão os agravos à saúde da população, à biodiversidade, ao habitat dos demais seres vivos, à preservação dos ecossistemas, à própria Terra como um todo. A confiança na tecnologia como panaceia para todos os males resultou em considerar a “inteligência artificial” como opção para o declínio da “inteligência natural”.

As políticas públicas privilegiam mercadorias para exportação, ao invés de dar prioridade para a produção e distribuição de produtos essenciais à subsistência. Além da redução da cobertura florestal, o País perdeu 15% de superfícies de água; a redução chegou a 74% no Pantanal e a 14% na Amazônia.

Sistemas baseados em micro e nanotecnologia para o controle de pragas estão atualmente sob escrutínio, face aos critérios de toxicidade e ação sobre o meio ambiente. Efeitos adversos relativos ao ultraprocessamento dos alimentos, às transformações genéticas, às radiações eletromagnéticas continuam ainda pouco explorados. Entidades diversas subsidiam pesquisas científicas, desde que seus resultados respaldem, a priori, o que afirmam sobre seus métodos, produtos e ações.

Um comitê, global e multidisciplinar, criado pela Organização Mundial da Saúde discute as implicações científicas, éticas, sociais e legais da edição do genoma humano. Face à atual pandemia, a Ethics International Press coloca os princípios da autonomia, não venda, beneficência, justiça e veracidade (direito à vacinação e direito a recusa). No tocante às armas biológicas, vários Estados ratificaram a Convenção com reservas, no tocante à aplicabilidade e à utilização de armas químicas ou biológicas em retaliação.

Como entender as coisas e lidar com elas é fundamental: relatórios científicos estarão sujeitos, nesses diferentes níveis de competência e decisão, a uma lógica própria.

Os media ditam valores e necessidades, interesses imobiliários ditam o espaço urbano, megaprojetos, a exploração agrária, a mineração ditam as políticas de desenvolvimento.

Como influenciar os níveis de decisão, se podem sempre escolher caminhos diferentes, de acordo com os interesses dos grupos políticos e económicos dominantes? Os relatórios científicos seriam suficientes para lançar luz sobre a transição ecológica e a formulação de políticas públicas efetivas, face às pressões existentes? Seriam mobilizadores e adequados para alterações relevantes, em termos políticos, econômicos e culturais e alcançar a opinião e o respaldo público?

Jornalistas, influenciadores, produtores, meios de comunicação social teriam que destacar os objetivos desejáveis e colocar em debate os caminhos para alcançá-los. Os problemas deveriam ser tratados face ao “fenômeno geral”, em vez de reduzi-los às manchetes do dia, aos formatos acadêmicos ou às políticas públicas de ocasião.

O resgate da Terra e o resgate da humanidade são aspectos complementares e devem ser tratados simultaneamente, no espaço e no tempo, para seu apoio mútuo.

Capacidade institucional, neutralidade judicial, informação transparente, espaços sociais para a discussão esclarecida das políticas públicas são aspectos fundamentais. Ações holísticas, ecossistêmicas e transformadoras (responsabilidade, transparência, resultados e impacto) implicam prestação de contas e escrutínio público.

Em eventos internacionais, os aspectos éticos voltam a ser considerados, mas a questão é que as mudanças dependem da adoção de novas formas de estar no mundo. Elas implicam o apoio de dimensões interdependentes: íntima (mundo pessoal); interativa (relações grupais); social (política, econômica); e biofísica (condições ambientais).

Existe uma sinergia entre todas essas dimensões: elas podem se congregar em torno de objetivos comuns (ecossistemas), ou se repelirem (ruptura e caos).

Eis aqui a caixa de Pandora.


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