Vencendo desafio do idioma, grupo pesquisa a história e a cultura “do outro lado do mundo”

A Ásia é um continente que dominou a história antiga, mas seu estudo hoje enfrenta dificuldades relacionadas à falta de especialistas com domínio dos idiomas locais

 28/09/2016 - Publicado há 8 anos
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O verão de 1868 marcou o fim do shogunato Tokugawa, e uma nova era, Meiji, foi proclamada - Cópia de ilustração de T. Chikanobu
Imagem representa início da era Meiji, marco da história japonesa – Cópia de ilustração de T. Chikanobu

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Este mês, o Laboratório de Estudos da Ásia (LEA), pertencente ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, promoveu um encontro para discutir, a partir de uma perspectiva histórica, o conceito de religião no Japão moderno. O palestrante convidado foi o professor Orion Klautau, da Universidade de Tohoku, no Japão.

Formado em História na USP, Klautau retornou ao auditório da faculdade na qual se graduou para apresentar aos alunos um pouco sobre seu trabalho à frente do Departamento de Estudos Japoneses da Universidade de Tohoku. Em sua pesquisa, o historiador analisou uma série de teóricos que registraram o caminho do budismo e do xintoísmo no coração da sociedade nipônica. Para ele, a própria palavra que conhecemos como religião, no Japão, é uma construção moderna cheia de significados e que possui diferentes conotações.

“Tanto a palavra ‘religião’ quanto palavras como ‘sociedade’, ‘indivíduo’, ‘liberdade’ e ‘constituição’ foram termos estabelecidos durante o período Meiji (1868-1912) para fins específicos de tradução. Apesar de alguns destes termos já existirem no período pré-moderno do Japão, é na era Meiji que serão ressignificados no intuito de interpretar novos conceitos europeus”, explica ele. “A própria ideia de ‘língua japonesa’ é desse período”, destaca.

Buda - Foto: Free image
Leitura de textos originais é considerada essencial por pesquisadores, e isso envolve trabalhar com idiomas totalmente diversos das línguas de origem latina – Foto: Daycha Kijpattanapinyo via Free Images

Como professor associado, Klautau ministra aulas na graduação sobre o período Meiji, além de realizar a leitura de textos históricos. Já na pós-graduação, atua em disciplinas relacionadas à história cultural do Japão moderno, principalmente religião e historiografia, além de orientar também trabalhos nestas áreas. “Tenho alunos japoneses e chineses e, a distância, tenho tentado coorientar, informalmente, alunos lusófonos”, conta ele ao relembrar que, apesar de desde muito cedo ter manifestado interesse pela Ásia, especificamente pelo Japão, foi durante a graduação em História que realmente começou a se dedicar ao campo, vislumbrando uma futura carreira acadêmica.

“Nunca pensei que eu pudesse de fato tornar-me um especialista no assunto, mas isso mudou quando tomei contato com a obra do professor Ricardo Mário Gonçalves, que havia se aposentado alguns poucos anos antes do meu ingresso na USP”, relembra o especialista. O professor Gonçalves havia sido o único docente a lecionar disciplinas de história do Japão e realizar pesquisas utilizando fontes originais. Sua tese reunia os temas da religião, historiografia e Japão, “três das áreas que mais me interessavam”, sumariza ele.

“Comecei a estudar japonês a sério e a aprender o máximo que pudesse através de obras em inglês, mas sempre tendo em mente que eu nunca poderia fazer nada de bom nível até que fosse capaz, de fato, de trabalhar com fontes originais”, revela Klautau.

Fontes primárias

Não por acaso, como confirma um dos coordenadores do LEA, Angelo Segrillo, professor do Departamento de História da FFLCH, trabalhar com fontes originais – ou primárias – está na essência do que faz um historiador. “O historiador, ao contrário de outras áreas, por definição trabalha com fontes primárias”, reafirma Segrillo.

Criado em 2009, o Laboratório de Estudos da Ásia congrega professores, estudantes e pesquisadores com o objetivo de estudar países e temas daquele importante continente.

Além de promover palestras regulares abertas ao público em geral, como a de Klautau, o LEA possui Grupos de Trabalho (GTs) dedicados a regiões específicas da Ásia, nos quais os membros realizam pesquisas próprias. Atualmente, o laboratório possui em torno de 25 membros fixos, além de uma população flutuante de interessados pelo tema.

Angelo de Oliveira Segrillo - Foto:Francisco Emolo/Arquivo Jornal da USP
Angelo de Oliveira Segrillo, especialista em história russa – Foto: Francisco Emolo/Arquivo Jornal da USP

A Ásia é um continente que dominou a história antiga, entretanto, para especialistas, seu estudo hoje enfrenta dificuldades. “Primeiro pela questão de Ocidente e Oriente, que foram se separando ao longo do tempo, a ponto de ter sido criada uma relação quase que de subordinação, numa visão eurocêntrica. A outra dificuldade é a língua”, conta Segrillo, que divide a coordenação do LEA com o professor Peter Demant (Relações Internacionais e História da Ásia).

“O LEA quer fomentar o interesse pelo estudo da história da Ásia aqui no Brasil e isso é difícil, principalmente no campo da história, porque para termos especialistas em Ásia no Brasil a condição sine qua non é a pessoa saber a língua do país, o que não é fácil”, reforça o docente.

Especializado em Rússia, um país euro-asiático, Segrillo explica que parcerias com departamentos como o de Letras da FFLCH são essenciais para o trabalho de um grupo como o LEA.

Para Segrillo, dominar um idioma é parte de um longo processo. “A pessoa tem que estudar a língua e, se puder, ir ao exterior. É um trabalho árduo. Por isso o nível de estudos da história da Ásia no Brasil ainda é baixo em comparação aos outros países”, salienta ele.

Uma rede em expansão

De acordo com sua experiência pessoal, Klautau confirma que não são poucas as barreiras para a formação de um especialista em Ásia no Brasil.

Se já é complicado terminar um curso de doutorado no país de origem, falando e escrevendo em língua materna, imagine, então, fazê-lo numa língua que se começou a aprender já depois de adulto.

Para os interessados em começar, o conselho de ambos os especialistas é dominar um idioma que possa servir de ponte entre o português e a língua do país que se quer estudar. “No nosso laboratório, começamos trabalhando com o inglês, mas isso não é o ideal. A partir disso, vamos criando essa massa crítica”, revela Segrillo, ao reforçar que ao redor do tema diversos especialistas não apenas são formados pela USP como também manifestam interesse em retornar à Universidade para discutir seus objetos de pesquisa.

Só nos últimos cinco anos, pesquisadores da Université Paris VII, da Academia de Ciências da Rússia, da Universidade de Kyoto e da Universidade Ain Shams do Egito realizaram palestras ligadas ao grupo, entre diversos outros. Em outubro, o historiador Vicente Ferraro, membro pesquisador do LEA, se une à lista de palestrantes da casa para, após um mestrado realizado na Rússia, apresentar um trabalho pioneiro sobre o sistema partidário local após o fim da União Soviética. “Ferraro voltou para o Brasil como um especialista de alto nível”, conclui Segrillo, reafirmando que é papel da universidade fazer pontes e expandir cada vez mais nosso conhecimento da história que acontece do outro lado do Planeta.

Mais informações: site http://lea.vitis.uspnet.usp.br


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