SPFW caminha para a equidade racial ao garantir diversidade nas passarelas

Em decisão histórica impulsionada pelo coletivo Pretos na Moda, a SPFW determinou que 50% dos modelos devem ser negros, indígenas ou asiáticos

 20/11/2020 - Publicado há 3 anos
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Foto: Extraída do Instagram – São Paulo Fashion Week

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No mês dedicado à consciência negra, os organizadores da São Paulo Fashion Week tomaram uma decisão nunca antes vista nos 25 anos do evento: estabeleceram que 50% dos modelos devem ser negros, indígenas ou asiáticos, visando à equidade étnico-racial na maior semana de moda do País. A ação é resultado da reivindicação do coletivo Pretos na Moda, que assinou um tratado moral com os organizadores do evento. Em caso de descumprimento do acordo, a marca poderá ser suspensa dos desfiles. O anúncio aconteceu nos perfis do Instagram da São Paulo Fashion Week e do coletivo Pretos na Moda. A determinação começa a valer já neste ano e deverá se estender para as próximas edições.

Além da pandemia de covid-19, o ano de 2020 foi marcado por protestos antirracistas que tomaram conta de todo o mundo, culminados no assassinato de George Floyd e Breonna Taylor, vítimas da brutalidade policial contra pessoas negras nos Estados Unidos. Na Semana de Moda de Milão, o movimento Vidas Negras Importam na Moda Italiana focou nos estilistas negros para conscientizar sobre a importância da diversidade. Já na Semana de Moda de Paris, Naomi Campbell discursou sobre racismo e cobrou representatividade. No Brasil, o perfil no Instagram Moda Racista, que foi retirado do ar, denunciou as discriminações cometidas por grandes nomes da moda contra profissionais do setor.

A diversidade representa o Brasil real

O estabelecimento de ações afirmativas no setor da moda permite que as passarelas retratem com maior acuracidade a diversidade étnico-racial da população brasileira. É essencial que o debate não fique restrito aos desfiles e seja estabelecido também em todos os níveis hierárquicos das indústrias, compartilha a designer de moda Maria do Carmo Paulino dos Santos, doutoranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestra em Têxtil e Moda pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP: “Precisamos adentrar a indústria e fazer esse debate. Precisamos falar dessa diversidade e de sua valorização em todos os espaços, cargos e funções dessa cadeia produtiva, para que se possa avançar nessa discussão”.

Até que ponto vai a inclusão?

Foto: Extraída do Instagram – São Paulo Fashion Week

A modelista Maria do Carmo não acredita que a atitude da São Paulo Fashion Week represente uma ruptura nos padrões da indústria da moda, porque a assinatura do tratado moral pode estar também conectada a questões econômicas, como atingir um novo público consumidor, o que torna a absorção da diversidade uma ferramenta de estratégia. “A indústria da moda vem dentro desse ranço escravocrata que sempre operou fazendo vistas grossas para as questões étnico-raciais. Não acredito que ela vá mudar por conta desses movimentos antirracistas da atual conjuntura. O que vai forçar uma fissura nesse setor é a questão econômica, ou seja, o poder de compra da população negra.” Para ela, a indústria da moda foca na lucratividade antes da humanidade e, por essa razão, ainda está distante das pautas sociais: “Entrar nessa pauta hoje é mais um modismo do que de fato uma ação social”.

Ao questionar se a indústria da moda utiliza as pautas raciais como forma de oportunismo, Maria do Carmo avalia que dar visibilidade às minorias sociais pode significar uma maneira de impulsionar os negócios: “Por conta desse interesse capitalista de grandes marcas de estampar o rosto de uma pessoa negra no seu produto, para vender mais ou para gerar mais engajamento, eu penso que essa indústria não está atenta a essas questões políticas e sociais que envolvem a população negra. Se a gente não ficar atenta, amanhã vem uma outra onda e o negro acaba ficando de lado de novo”.

A descolonização da SPFW

Os negros e pardos constituem cerca de 56% da população, segundo levantamento de 2019 feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A reivindicação do coletivo Pretos na Moda marca um passo importante no combate ao racismo e na conquista do lugar social dos negros e indígenas, como explica a professora Eunice Aparecida de Jesus Prudente, do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito (FD) da USP: “O movimento Pretos na Moda está contribuindo para a cidadania dos profissionais, sobretudo dos modelos. Já há muito observamos que a cidadania dos negros brasileiros tem dependido muito da sociedade civil organizada e de seus movimentos. A assinatura de um tratado moral expressa um momento novo, ou seja, de caminhos legais e pacíficos para enfrentar o racismo estrutural presente no Brasil”.

Na visão da professora Eunice, antes da determinação que garante 50% de negros, indígenas ou asiáticos nas passarelas, a São Paulo Fashion Week apresentava um Brasil branco inexistente: “A SPFW estava descaracterizada porque estava colonizada. Ela apresentava um Brasil europeu quando, na verdade, o Brasil é diverso, formado por vários povos, e entre eles estão os negros, tão presentes na sociedade”.

O racismo estrutural impede a equidade racial

Foto: Extraída do Instagram – São Paulo Fashion Week

O principal fator que impede a maior representatividade de negros e indígenas, seja nas passarelas ou em outros lugares, é o racismo estrutural. Apesar de o Brasil ter ratificado a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial em 1968, ainda pouco foi feito para combater efetivamente o racismo e para conquistar a equidade social. Eunice afirma que o racismo na sociedade brasileira naturalizou e banalizou o maltrato ao outro e o desrespeito à diversidade étnica do País. “O racismo é estrutural porque não há placas com proibições a negros ou indígenas, mas malevolamente, racionalmente, são colocados obstáculos por instituições públicas e privadas. Isso é racismo estrutural. E não causa espanto à sociedade porque o racismo está naturalizado entre nós.”

A professora Eunice acredita que a educação e a informação são as diretrizes para garantir que as minorias sociais conquistem a equidade: “O nosso caminho é informação e educação. A SPFW está colaborando com a informação e com a educação porque o que é produzido ali é arte e a arte instrui e encanta”. A ação do coletivo Pretos na Moda é um marco histórico no setor, mas o combate ao racismo e a luta pela ampliação da diversidade deve ser de todos, como informa Maria do Carmo: “Temos que dar os méritos para essa juventude, esses jovens negros, que estão fazendo esse enfrentamento. E esse enfrentamento também precisa ser feito por costureiras, por nós, modelistas, pelos estilistas, que também se sentem prejudicados e que não conseguem espaço. Esse enfrentamento é de todos nós”, finaliza.

Ouça a entrevista de Maria do Carmo Paulino dos Santos, doutoranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestra em Têxtil e Moda pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, e de Eunice Aparecida de Jesus Prudente, do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito (FD) da USP, ao repórter Kaynã de Oliveira sobre o tratado moral entre o coletivo Pretos na Moda e os organizadores da São Paulo Fashion Week, o qual exige equidade étnico-racial nos desfiles.


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