Livro mostra a complexidade das ideias sobre a Palestina no jornal “Le Monde Diplomatique”

O livro “Paris – Palestina: Intelectuais, Islã e Política no Monde Diplomatique” estuda a cobertura sobre a Palestina no jornal francês e mostra ideias que pautaram a representação da causa na França

 14/12/2020 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 16/12/2020 as 4:55
Por

A jornalista e historiadora Juliana Sayuri é autora de Palestina: Intelectuais, Islã e Política no Monde Diplomatique (Editora Appris). No novo livro, fruto da continuidade de suas pesquisas em que o periódico é chave para acessar o pensamento de esquerda, ela estuda elementos da cobertura da Palestina para mostrar a complexidade dos embates que pautaram a representação da causa na França. 

Juliana Sayuri – Foto: Intercept

Tendo analisado a variedade de vertentes sobre o Islã presentes nas páginas do jornal em sua pesquisa de pós-doutorado, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a autora elucida que, embora exista um direcionamento comum nas edições, as entrelinhas estão repletas de posições que disputam, se complementam ou até se chocam. Fenômenos como os atentados de Nova York (2001), Primavera árabe (2010-2012) e campanhas cibernéticas como o #JeSuisCharlie (movimento em solidariedade ao atentado terrorista na redação do jornal Charlie Hebdo) são analisados. O livro é o terceiro da trilogia que analisa o periódico, os dois primeiros —  “Diplô: Paris – Porto Alegre” (2016) e “Paris – Buenos Aires” (2018) — foram realizados na Faculdade de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da USP. 

“Os elementos presentes no livro conversam com a atualidade”, diz Juliana ao Jornal da USP. França como alvo de atentados terroristas motivados pela defesa do Islã, tensões culturais, discussões sobre os limites da liberdade de expressão com o uso da imagem de Maomé, acirramento de discursos de extrema direita e a islamofobia estão entre os temas. 

São elementos que marcaram o passado, marcam o presente e, até que sejam francamente discutidos de modo a selar mínimos consensos na sociedade, esses impasses vão continuar a deixar cicatrizes no país”, completa. 

O jornal se posiciona como um veículo de esquerda. A definição de Ignácio Ramonet, um dos últimos editores do periódico e sociólogo espanhol, imprime uma noção de que o Le Monde Diplomatique tem um propósito maior, como uma causa, não apenas um jornal.

Ao situar o periódico em um lado do espectro político, é dada uma linha editorial ao jornal que definirá os temas tratados. Entretanto, mesmo contando com essa diretriz, os posicionamentos encontrados nas edições são muito particulares. “É importante que nós vejamos o Diplô (sic) não como um bloco monolítico de esquerda, mas como algo repleto de posicionamentos em disputa, mesmo dentro dessa posição geral”, afirma Juliana.

A representação da Palestina

Durante a década de 1950, o tratamento do Le Monde  Diplomatique em relação a Israel era muito claro: eles apoiavam a causa sionista. Na época, a relação entre França e Israel era bastante amigável, diplomatas israelenses escreviam artigos no jornal elogiando a recém-criada nação, por exemplo.

A partir da década de 1980, o posicionamento do jornal mudou e as edições começaram a ter um olhar mais crítico sobre o conflito entre Israel e Palestina. Os posicionamentos eram que Israel estava fazendo um “apartheid” e que estavam tendo uma postura de colonizador. Atualmente, o jornal trabalha a causa palestina como a última guerra colonial do mundo. E, constantemente, tenta afastar a ideia estigmatizada sobre o mundo muçulmano. 

Na década de 1990, o Le Monde Diplomatique começou sua expansão para além das fronteiras da França. O periódico ganhou, nessa época, uma edição no mundo árabe, com a proposta de cobrir a região com olhos nativos, e a realização dessa empreitada se deu por meio de parcerias com jornalistas locais. A intenção, ao procurar pessoas da própria região, era não deixar a cobertura internacional ficar presa em uma visão eurocêntrica sobre o mundo árabe e a própria Palestina.

O terrorismo

Em 2001, com o atentado às torres gêmeas por terroristas vinculados à Al-Qaeda, os historiadores marcam o início do século XXI. Com isso, o ataque a um dos principais símbolos norte-americanos criou um novo inimigo do Ocidente, e começa-se uma disputa com grande publicidade, associando o mundo islâmico à má notícia.

O Le Monde Diplomatique procura cobrir a questão tentando desassociar a visão estigmatizada sobre o mundo muçulmano. “Sempre que eles citam a palavra terrorismo, fazem questão de contextualizar o termo, criticando a visão que mistura islamismo com fundamentalismo”, explica a autora. É uma tentativa constante, no periódico, trazer uma posição crítica à visão do Oriente Médio como algo perigoso. “Inclusive, chega a ser repetitivo, nas matérias, todas as vezes em que o termo terrorismo é usado eles explicam o distanciamento desse comportamento do Islã em si.”

A Primavera Árabe 

+ Mais

Islamismo – a visão de um cristão ocidental

A Primavera Árabe teve um efeito incomum sobre o Le Monde Diplomatique. O fenômeno foi responsável por encerrar as publicações da edição árabe do periódico. Assim, há visões concorrentes que tentam explicar o motivo do ocorrido, levando em consideração que, por ser um jornal de esquerda, movimentos sociais dessa dimensão, em teoria, impulsionariam a redação.

Uma das explicações atribui motivação política ao encerramento. Nesse sentido, a interpretação é de que a cobertura teria desagradado à política local e por isso acabou. Outra teoria é de que a influência da crise econômica, causada pela instabilidade da região durante a Primavera Árabe, atuou no sentido de acabar com a estrutura, já frágil, da colaboração no Oriente. Para Juliana, a junção dos dois fatores foi responsável pelo fim.

“É comum pensarmos nesse braço árabe como uma redação de grande porte, mas não era. Contava com esquema de colaboração, uma rede muito frágil e fluida, não são estruturas internacionais de grande porte. Estava à mercê das crises dentro dos próprios países”, explica a autora. 

Conclusões

“O resultado principal é que, embora imaginemos um periódico famoso como um grupo uniforme, a pesquisa mostra que isso é muito mais complexo”, elucida Juliana. Dentro das páginas do jornal há uma série de nuances para analisar, o que mostra como o Le Monde Diplomatique é um veículo vivo. 

“Acho que é uma visão importante que devemos levar em consideração sobre a imprensa, que nunca é uma coisa só”, continua a autora. No caso da dissolução da edição árabe, por exemplo, duas explicações discordantes sobre o fim de um mesmo jornal. 

“Em linhas gerais, há um movimento de intelectuais e de ideias muito efervescente e muito vivo, apesar de se ter essa imagem cristalizada. Isso é importante porque vale tanto para periódicos quanto para os estudos da grande imprensa que também é visto como um bloco monolítico”, conclui a autora.

Mais informações: e-mail julianasayuri.o@gmail.com, com Juliana Sayuri


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.