Pandemia e urbanismo

Por Bruno Roberto Padovano, professor da FAU/USP, e Geovany Jessé Alexandre da Silva, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPB

 18/05/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 20/05/2020 as 19:16
Bruno Roberto Padovano – Foto: Arquivo pessoal

 

Geovany Jessé Alexandre da Silva – Foto: Arquivo pessoal
Desde a criação das primeiras cidades, há cerca de 10 mil anos, surtos de doenças vêm castigando suas populações, até por causa do adensamento humano e precárias condições sanitárias, que facilitaram sua expansão e, em muitos casos, altas taxas de mortalidade e grau de sofrimento inimaginável, como na temida peste negra (ou peste bubônica), que, no século XIV, ceifou a vida de mais de 200 milhões de pessoas.

Mais recentemente a gripe espanhola, ocorrida logo após o fim das hostilidades da Primeira Guerra Mundial, no início do século XX, infectou 500 milhões de pessoas e levou cerca de 50 milhões à morte prematura, pelo mundo afora.

Pestes, epidemias e pandemias (a forma mais assustadora e impactante sobre a vida humana na Terra) têm acompanhado o processo de expansão das redes urbanas sobre a superfície do globo terrestre, gerando uma forma de controle sobre o crescimento de sua população, calculada ao redor de 1 bilhão e 300 milhões em 1900 e quase 8 bilhões nos dias de hoje, o que mostra que não foram capazes de deter seu crescimento, mesmo auxiliadas por guerras e desastres naturais e, lamentavelmente, humanos.

A medicina, especialmente a partir da utilização de antibióticos e vacinas no século passado, vem atuando de forma espetacular na luta humana contra viroses e bactérias causadoras das doenças infecciosas que, no passado, determinaram a morte de milhões (como os povos indígenas em contato com os colonizadores, que tinham anticorpos para doenças infecciosas, como o sarampo e a varíola, mas as passavam para esses povos com grande facilidade), não apenas em cidades, mas também em aldeamentos neolíticos.

Laboratórios da mais alta tecnologia, sistemas informáticos avançados, inteligência artificial e tantos outros recursos da “Nova Era” contrastam com as condições miseráveis da vida diária de bilhões de seres humanos em ambientes sub-humanos, detestáveis e inaceitáveis. Um largo fosso separa a medicina moderna de outras ciências, igualmente antigas e honrosas.

O urbanismo, uma atividade de planejamento e projeto de cidades, é profissão tão antiga como a dos construtores das cidades e dos adeptos das ciências médicas.

Durante os milênios, desde a criação dos primeiros centros urbanos na Mesopotâmia (como Ur), questões relacionadas à segurança de ataques externos (muralhas, fossos), depois, com o fornecimento de água potável (os famosos aquedutos romanos), galerias de esgoto (antigamente eram fossas que contaminavam os poços de água potável), separação dos enfermos, criação de cemitérios e espaços verdes para recreio social têm sido algumas das formas de assegurar o bem-estar físico e psicológico das populações urbanas até o final do século XIX. Assim, entende-se que o urbanismo sempre esteve bastante atrelado aos avanços no campo das ciências médicas e biológicas, dando respostas às formas e infraestruturas para sustento e organização das cidades, ou mesmo a sua militarização.

No século XIX, o higienista Saturnino de Brito (1864-1929), exímio engenheiro e urbanista de seu tempo no Brasil, dotou cidades como Santos com um inteligente sistema de canais para o escoamento de drenagem hídrica e esgotamento de detritos humanos, o que evitou muitas das doenças que afetam suas populações, até hoje, como a leptospirose, por exemplo, em favelas na beira de córregos contaminados pelo esgoto não canalizado e tratado, como exige a engenharia sanitária moderna.

Os urbanistas partícipes do movimento moderno, no início do século XX, na arquitetura (tendo nos CIAMs – Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna seu ponto de encontro para trocas entre si, antes e depois da Segunda Guerra Mundial) tinham essa referência higienista em mente quando elaboraram seus modelos urbanísticos, como podemos observar no plano piloto de Brasília, por exemplo. No entanto, tais modelos foram objetos de críticas nos últimos CIAMs, por desconsiderarem a complexidade das cidades atuais e a diversidade dos contextos nos quais os urbanistas contemporâneos operam.

Mais adiante, a partir dos anos de 1960, teóricos como Jane Jacobs e Christopher Alexander consolidam críticas a esse modelo urbano, e definem padrões de ocupação mais compactos e de maior vitalidade para a caminhabilidade das ruas. Assim, a casa como “máquina de morar” e a cidade “funcionalista” entrariam em desuso teórico e prático, enquanto novas propostas de urbanismo surgem nas periferias (mais dispersas) e centros (mais compactos), naqueles tempos e até os dias atuais.

Agora, neste contexto, caberiam – a nosso modo de ver – três grandes perguntas para nós, urbanistas, sobre o antes, o durante e o depois de pandemias como a atual, da covid-19, causada por um coronavírus de fácil propagação, mas por sorte de relativamente baixa letalidade:

  • como o urbanismo lidou, no passado, com pandemias desse tipo?
  • como os modelos urbanísticos atuais e emergentes fornecem soluções às demandas de uma sociedade globalizada, na qual há um nível elevado de conectividade interpessoal, mas que pode operar economicamente a distância, graças às tecnologias da informação e comunicação?
  • o que tiramos desta pandemia, até agora, como lições para mudarmos ou
    aperfeiçoarmos tais modelos, com vistas ao futuro?

Evidentemente, não há respostas fáceis, mas poderíamos avançar algumas linhas de investigação científico-profissional para que pesquisas e experimentações possam ser levadas adiante, a partir da análise, por exemplo, da relação entre densidades urbanas e o grau de contágio e mortalidade, ou das modalidades de transportes inter e intraurbanos adotados em larga escala num planeta cada vez mais globalizado. Ou ainda, a definição de padrões de ocupação e ordenação territorial mais ou menos adequados conforme cada ambiente, socioeconomia, bioma ou cultura.

Conceitos contemporâneos como “cidades inteligentes” (smart cities) e “cidades compactas” (compact cities), como os preconizadas por urbanistas contemporâneos como Richard Rogers, deveriam ser reavaliados em função de dados empíricos constantemente atualizados e, ao mesmo tempo, retroativos, para evitar a criação de modelos incompatíveis com a complexidade territorial que se observa nas diversas regiões do planeta.

É possível que, a partir de tais pesquisas atualizadas, urbanizações difusas e cidades de menor porte, distribuídas em redes, com densidades mais baixas daquelas observadas em centros urbanos adensados e congestionados, possam evitar surtos epidêmicos, ou pelo menos limitar sua mortalidade, por exemplo, em determinados contextos e sempre de forma relativa. Afinal, pesquisas apontam para o maior contágio pelo ar, e em aglomerações de pessoas em espaços (principalmente fechados e climatizados artificialmente) públicos e privados. Essa condicionante deve ser verificada – cientificamente – para os novos marcos legais da construção civil e códigos urbanos.

Ao mesmo tempo, tais dados deveriam ser relativizados por aspectos socioculturais, infraestruturais, geográficos, climáticos, políticos e econômicos, dentro de muitos outros fatores a serem levados em consideração por meio de uma abordagem transdisciplinar, que possa inclusive tornar a atividade urbanística uma das áreas mais férteis para esta nova abordagem holística para a ciência contemporânea, especialmente em centros urbanos de crescente urbanização, nos países em desenvolvimento, particularmente.

Um imenso campo de pesquisa se abre, portanto, a partir dessa dramática crise sanitária atual, que os chineses – que aparentemente a exportaram –, escrevem em sua língua por meio da associação de dois ideogramas: “desastre” e “oportunidade”.

Apesar de suas limitações atuais, transformar o desastre em oportunidade é um claro indício de sua milenar sabedoria, e talvez seja mesmo com este espírito (e com fartos recursos para a pesquisa e sua necessária infraestrutura) que uma nova leva de urbanistas transdisciplinares possa avançar com sua própria contribuição científica e profissional para que a vida na Terra seja mais baseada nos ideais franceses de “liberdade, igualdade e fraternidade”, ofertando uma vida mais longa e saudável para toda a população mundial.

Novas cidades/territórios e intervenções urbanas em cidades e comunidades existentes, voltadas para a elaboração de inovadores sistemas de espacialidade e interação interpessoal e social – que tornem desnecessária a improvisada adoção do distanciamento social (ou físico, como preferem alguns) como uma ação paliativa diante da desafiadora “criatividade” dos vírus de última geração –, poderão surgir, em resposta e antecipação de novas pandemias, por meio da engenhosidade humana.

Talvez a oportunidade surja de uma comoção (e conscientização) coletiva, pelas vidas perdidas, alterando rotas mais egoístas do sistema global, fazendo com que o homem se reconecte com a sua natureza e meio ambiente. Sendo essa mudança de paradigma passível de redirecionar a economia global para um green new deal ou para um “novo normal” de um mundo mais cooperativo, sistêmico e igualitário.

Ou seja, um mundo de novas oportunidades: um “urbanismo profilático” e esperançoso, otimista e vibrante, inventivo e surpreendente, belo e útil, como resposta definitiva contra a dor e o sofrimento humanos, perfeitamente previsíveis em situações menos inteligentes, nas quais esta engenhosidade é acanhada por mediocridades e egoísmos, o lado sombrio da mesma humanidade brilhante na qual apostamos. Afinal, a humanidade sempre tem buscado alternativas, ora visionárias, ora pragmáticas, para se vencer os desafios de cada época com criatividade, imaginação e arte.

Para aqueles que acreditam ser o universo criação de uma inteligência divina, como tudo aquilo que nele ocorre – como a própria ciência desenvolvida pela humanidade –, esta é também uma oportunidade para investir em recursos necessários para que tais “novos urbanistas” possam atuar de forma digna, segundo os desejos de um Deus benigno e protetor, cuidando melhor de suas filhas e filhos, nesta e nas futuras gerações, por Sua própria iniciativa e decisão.


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