A dor e o prazer não são as faces de uma mesma moeda

Por Eva Alterman Blay, Professora Emérita do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo

 29/04/2020 - Publicado há 4 anos
Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Surpreendente a matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo (25/4/2020, p. A5), “O coronavírus e a saúde no Brasil”, assinada pelo sr. José Isaac Peres, fundador e CEO da Multiplan, e proprietário e criador de diversas empresas imobiliárias, como shopping centers no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Ribeirão Preto e outras partes do Brasil.

Uma de suas mais inovadoras atividades foi a incorporação de clínicas de saúde nos shoppings pois, como ele diz, as pessoas têm o prazer de fazer compras e encontram ali um ambiente agradável para poder fazer também, se necessário, uma consulta médica. Não tenho a menor dúvida dessa conveniência, sobretudo quando se pode pagar por uma consulta ou um exame.

No entanto, causa enorme estranheza quando um importante empreendedor paga uma página inteira de relevante jornal para afirmar que no Brasil o coronavírus NÃO MATA as pessoas e dá como prova uma tabela onde os óbitos no Brasil são 1,4 para 100 mil habitantes!

Não é preciso ser profundo conhecedor de estatísticas para ver que, ao construir a tabela de dados da covid 19, o sr. Peres ignora o tempo em que esse vírus se instalou nos diferentes países. Enquanto na Europa as ações sanitárias começaram no final de dezembro ou começo de janeiro, no Brasil, estávamos no carnaval e nada havia sido feito.

Analisemos os dados, considerando que o Brasil estava muito atrasado e levou mais de um mês depois da Europa e da China para começar a controlar a epidemia. Vejamos estatísticas de 23/4/2020, na Europa:

Fonte: https://www.worldometers.info/coronavirus/

Comparemos o Brasil e a Alemanha. Na Alemanha o serviço de saúde é de alta qualidade e é público; lá morreram 5.334 pessoas de um total de 151.022 doentes. Para controlar a doença, fizeram 2 milhões de testes; 103 mil pessoas sararam e os dados de mortes são computados quando a epidemia praticamente chegou ao auge.

No Brasil, ao contrário, estamos numa fase de crescimento da epidemia, e não preciso dizer qual é a qualidade de nosso ambiente sanitário e, sobretudo, do SUS, que faz o que pode à custa do sacrifício de abnegados profissionais. Hoje (28 de abril), nas últimas 24 horas morreram 474 pessoas do coronavírus e no País há 5.017 mortos, portanto, superamos a China.

Quando chegarmos ao auge da epidemia, e não vai demorar muito, pois ela triplica a cada semana, provavelmente teremos a situação de Manaus, Recife e outras cidades onde faltam cemitérios. O texto do sr. Peres, que ocupa uma página inteira de importante jornal, tem uma subjacente intenção: é preciso voltar ao trabalho. Mas será que temos condição de voltar abrindo mão da segurança que o distanciamento social permite? Qual o preço em vidas para esse retorno descuidado?

Juntos vamos lutar pela saúde do Brasil”, conclui o texto do sr. Peres. Sugiro que sua inegável capacidade empreendedora se volte para a expansão dos serviços de saúde pública no Brasil, colaborando com seu talento para diminuir a dor e aumentar o prazer pela vida.


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