A incerteza é um dos maiores desafios para a ciência, governos, negócios, e para a sociedade. A pandemia do coronavírus (covid-19) revela uma nova série de grandes incertezas, em diferentes aspectos: como tratar os doentes?; quando teremos uma vacina?; o que faremos até lá?; até quando durará o isolamento social?; quais serão os efeitos na economia e como mitigar os efeitos negativos?; entre tantas outras. Mas como podemos enfrentar e como superar tais incertezas? Para tanto, precisamos entender o que é uma incerteza (e que problemas ela coloca para a ciência, negócios e sociedade), assim como de que forma iremos responder a ela.
Frank Knight foi pioneiro ao diferenciar a incerteza do risco. Na sua clássica concepção, Knight[1] , em 1921, argumentou que risco se refere às situações nas quais é possível atribuir uma função de probabilidade aos resultados de um dado evento, enquanto a incerteza se refere aos contextos nos quais isso não é possível. Disso decorre que, em uma situação envolvendo incertezas, não existe histórico suficiente que nos permita fazer previsões. Por exemplo, em um lançamento de um novo celular, dados passados permitem que as empresas projetem as suas vendas, a reação dos competidores, estratégias de preço, comportamento dos consumidores, entre outros aspectos.
No caso da saúde, quando estamos lidando com doenças conhecidas e estudadas, é possível prever o número de doentes que o sistema de saúde (público e privado) irá receber em um dado período. Podemos assim estimar a demanda por equipamentos, profissionais de saúde, insumos (como medicamentos), entre vários outros aspectos. Já para os contextos ligados à incerteza, simplesmente não sabemos: não temos dados suficientes para fazer previsões. É o que nos ensinou Knight. Esquecido, o seu trabalho foi posteriormente recuperado pelo economista John Maynard Keynes[2] (1937) para mostrar como a incerteza quebrava a lógica da previsão na economia. Como Keynes destacou, “não existe base científica para calcular nenhuma forma de probabilidade. Nós simplesmente não sabemos”.
De fato, uma primeira consequência da incerteza para a vida humana é a impossibilidade de realizarmos previsões. Se não temos dados históricos de uma dada situação, não temos como fazer previsões. Mas o problema da incerteza e as suas consequências vão além da inviabilidade de se utilizar previsões para a tomada de decisões. É, essencialmente, o que as incertezas provocam em três aspectos fundamentais de uma situação como a atual pandemia: qual é de fato o problema ou os problemas que estamos enfrentando?; quais são as soluções?; e quais são as consequências dessas eventuais soluções?
A inexistência de um histórico para apoiar a tomada de decisão cria um desafio para o conhecimento (ou epistemologia) em termos da sua validade e justificativa. Como o próprio problema em si é incerto (os seus limites: problema de saúde pública, econômico, social, atores etc.), e, consequentemente, as soluções, atores podem estabelecer diferentes narrativas ou teses sobre o problema em si.
Agentes políticos na Itália, Brasil e Estados Unidos negaram inicialmente a gravidade da covid-19 ou, quando muito, fizeram afirmações no sentido de que a situação estava sob controle. Diante da possibilidade de ações que, em tese, afetariam a economia, também refutaram ou colocaram em questionamento os potenciais efeitos positivos de tais medidas (especialmente as mais severas, como o isolamento social total e geral). Nesses países, parte da mídia, políticos, empresários e da sociedade civil se dividiu sobre qual era o problema e, posteriormente, sobre quais eram as soluções.
Infelizmente, em cenários de grande incerteza, comportamentos oportunistas podem emergir. “Guerras” de versões e soluções milagrosas podem ter consequências dramáticas. Recentemente, o prefeito de Milão reconheceu o erro ao apoiar uma campanha para a cidade não parar: “No dia 27 de fevereiro, circulava nas redes o vídeo #Milãonãopara. Naquele momento, ninguém tinha compreendido a gravidade do vírus”. A mudança veio apenas quando a qualidade da informação sobre o impacto da doença melhorou (com a consequente morte de milhares de pessoas e colapso do sistema de saúde) e, então, os cidadãos italianos puderam melhor compreender as incertezas ligadas à pandemia (problema, soluções e consequências).
Contudo, fatos anteriores podem ter contribuído para o modo com que esses atores enfrentaram as incertezas relacionadas à pandemia ligada à covid-19. Nesse sentido, chamam bastante atenção as referências à doença como uma espécie de gripe (por exemplo: comparando os sintomas)[3], o que pode ter contribuído para que diferentes atores pensassem que as incertezas não eram nem tão profundas e as suas consequências nem tão trágicas. Afinal, as gripes são mais conhecidas e fazem parte do atual portfólio de riscos e incertezas com os quais já sabemos como lidar.
Mas a pandemia revelou muitos elementos novos e desconhecidos: (i) os efeitos sobre o sistema de saúde, com a possibilidade de uma alta demanda por hospitalização, inclusive em UTIs, em um curto espaço de tempo, o que pode levar ao colapso; (ii) o rápido espalhamento do vírus; (iii) as razões por trás da existência de grupos mais vulneráveis ou a morte de jovens; (iv) os efeitos da comunicação sobre a doença no comportamento da população (por exemplo, se uma comunicação mais transparente sobre o que não sabemos e o que sabemos causa pânico ou é necessária para informar a população); (v) como responder à pandemia na ausência de um tratamento efetivo e/ou de uma vacina; entre outros.
Na atual crise, as incertezas assim colocam um enorme desafio para sabermos qual é o problema, qual é a solução e as suas consequências. Para atravessarmos esta jornada da incerteza, nossas pesquisas sugerem que esse caminho, normalmente, passa por algumas fases, conforme figura abaixo:
Reducionismo
Nessa fase, diferentes atores minimizam ou simplesmente negam a existência e os efeitos de novas incertezas. Isso pode repercutir na forma que elaboramos qual é o problema, as suas soluções e consequências. Vieses de aversão à incerteza podem ser ativados e levar à paralisia. Alguns dos exemplos citados aqui anteriormente se encaixam nessa fase, como as frases do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. No início de fevereiro de 2020, Trump disse: “O coronavírus está sob controle nos Estados Unidos”. Poucos dias depois (em 26/2/2020), o presidente tuitou críticas à imprensa, em especial à CNN (“Low Ratings Fake News MSDNC (Comcast) & @CNN are doing everything possible to make the Caronavirus look as bad as possible, including panicking markets, if possible. Likewise their incompetent Do Nothing Democrat comrades are all talk, no action. USA in great shape! @CDCgov…”). No dia 31/3, estudos apontam que poderão morrer nos Estados Unidos entre 100 mil e 240 mil pessoas[4]. No Brasil, também temos exemplos de autoridades referindo-se ao coronavírus e à pandemia como “gripezinha”, “fantasia”, “histeria”.
Como superar a fase de reducionismo
É fundamental procurar entender o que é esta nova incerteza. Cautela é importante ao estabelecer comparações, analogias ou retóricas. Elas podem gerar um efeito não desejável de fixação e aprisionamento. Por medo de acionar vieses de aversão à incerteza, muitos atores podem temer comunicar tais incertezas ao público mais geral. No entanto, a falta de transparência sobre tais incertezas pode contribuir para a quebra da confiança pública.
Nossas pesquisas sugerem que a não comunicação de incertezas pode gerar novas incertezas (o que chamamos de propagação de incertezas)[5]. As incertezas podem também ser usadas como instrumentos políticos, o que pode contribuir para estender a duração da fase de reducionismo. Além disso, as crenças, inclusive ideológicas, podem afetar a nossa capacidade de percepção e reação frente às incertezas.
Experimentação pioneira fragmentada
Poucos atores pioneiros se engajam, inicialmente, para tentar compreender a incerteza e como mitigá-la. Há poucas e pobres informações sobre qual o problema a ser enfrentado e as eventuais opções existentes. Tais atores arriscam a sua legitimidade e credibilidade ao não mais aceitarem a posição dominante de reducionismo ou negação. Na tentativa de aprender sobre as incertezas, estes atos de emancipação se traduzem em experimentos. Entretanto, falhas em experimentos podem e vão ocorrer. É preciso reagir aos vieses de falhas e eventuais retaliações.
O emblemático caso é o do médico chinês Li Wenliang, que avisou aos colegas médicos sobre a existência de um vírus com sintomas similares ao da síndrome respiratória aguda grave, mas que foi orientado pela polícia chinesa a “parar de fazer comentários falsos”[6]. Ou a reação inicial de contrariedade às medidas de isolamento social adotada por alguns estados e prefeituras no Brasil.
O que não fazer na fase de experimentação pioneira
Cobrar ou oferecer versões definitivas para o problema, as soluções e as consequências. Novos conhecimentos podem derrubar teses iniciais, e se basear em conhecimentos frágeis de experimentos muito iniciais deve ser evitado. Afirmações falsas ou sem fundamento científico podem aumentar o número ou o grau das incertezas.
O exemplo mais recente é o caso do medicamento cloroquina, que ilustra bem os desafios nessa fase. O seu anúncio por algumas autoridades, sem comprovação científica suficiente, como tratamento para a cura da covid-19 levou a uma corrida às farmácias no Brasil. Além disso, é importante ficar aberto à experimentação e ao acúmulo de conhecimento, evitando “guerras” de versões e retaliações. Cabe lembrar que atores ainda no estágio de reducionismo podem contra-atacar aqueles que já estão na fase de experimentação pioneira, diante de falhas ou da existência de lacunas de conhecimento, que são naturais nesse momento.
Abraçando as incertezas para superá-las
Nessa fase, com melhor acúmulo de conhecimento e informações, mais atores decidem abraçar as incertezas, aceitando que nem o problema, nem as soluções, nem as consequências são claros ou totalmente conhecidos (há lacunas reais de conhecimento). Os atores entendem que esperar por mais informações pode ter um custo dramático e irreversível.
Alguns países recentemente entraram nessa fase, como a Alemanha, França, Espanha, Itália e Estados Unidos. Agora, há melhor coordenação entre os diferentes atores da sociedade, que encaram juntos e de forma alinhada os desafios da incerteza. Finalmente, diversos atores percebem que as incertezas são interdependentes[7] e pedem ações orquestradas e coordenadas para respondê-las.
O que não fazer nessa fase
Novas incertezas podem surgir e se somarem às anteriores, e muitos atores podem acabar voltando aos estágios anteriores. Nesse momento, é importante perseverar no enfrentamento das incertezas. Comunicação mais ampla sobre as incertezas. Reconhecer e mudar em caso de emergência de novas informações. Constante atualização das informações. Cuidado extremo sobre a qualidade da fonte das informações.
Nem todos os atores da sociedade passam rapidamente do estágio 1 para o último. Nem todas as sociedades passam pelo estágio 2 numa dada situação (por exemplo: Singapura, Coreia do Sul). O grande alerta que os nossos estudos evocam é que o Brasil e os outros países devem abraçar, de forma mais definitiva, as incertezas do coronavírus.
A crise do coronavírus pede uma resposta sistêmica e urgente às incertezas. Essa resposta sistêmica envolve a tomada de decisões baseando-se em informações científicas e confiáveis, transparência em divulgação de dados, ações coordenadas e com a premissa de que se pode mudar a cada nova informação ou descoberta relevante. Somos uma sociedade interdependente, nossa resposta às incertezas deve ser coordenada para construirmos uma saída juntos, para esta jornada que vai ser longa e dura.
Em ambientes de alta incerteza, geralmente, buscamos minimizar as perdas. Mas as reais perdas, agora, não são econômicas apenas. As perdas irrecuperáveis e irreversíveis são as vidas. Nós podemos reconstruir a economia. Já fizemos no passado e vamos fazer novamente.
[1] Risk, Uncertainty and Profit, Boston, Houghton Mifflin, 1921.
[2] “The General Theory of Employment”, in Quarterly. Journal of Economics, 51(2), 1937, pp. 209-23.
[3] Ver https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-03-03/como-o-coronavirus-se-compara-com-a-gripe-os-numeros-dizem-que-ele-e-pior.html.
[4] Ver https://www.nytimes.com/2020/04/01/us/politics/coronavirus-trump.html?action=click&module=Spotlight&pgtype=Homepage.
[5] Gomes et al., “How Entrepreneurs Manage Collective Uncertainties”, in Technological Forecasting Social Change, 128, 2018, pp. 164-85.
[6] Ver https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51411980.
[7] Em nossas pesquisas discutimos a noção de incertezas interdependes ou coletivas: Gomes et al., op.cit.