“As pessoas não vivem sem a sua cultura, mas não se dão conta disso”

Carlos Augusto Calil, ex-secretário municipal de Cultura, critica a atual guerra não declarada contra a inteligência e os princípios da democracia

 06/12/2019 - Publicado há 4 anos
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Carlos Augusto Calil – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“O sentimento que o atual governo federal reflete é de que a Cultura é inimiga da religião, das instituições, da manutenção do poder constituído. A arte tem de fato a capacidade de promover a emancipação do indivíduo que pode incomodar um poder anacrônico, reacionário, expondo suas inconsistências e falácias.” Em entrevista ao Jornal da USP, Carlos Augusto Machado Calil – professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e ex-secretário municipal de Cultura –, protesta contra a “política incendiária” do atual governo.

Calil explica que estamos enfrentando uma guerra não declarada contra a inteligência, a tolerância, o patrimônio simbólico nacional que vai contra os princípios da democracia. Em sua gestão como secretário de Cultura, de 2005 a 2012, reformou 48 bibliotecas de bairro, restaurou o Teatro Municipal, renovou a Biblioteca Mário de Andrade e criou eventos para incentivar a arte e a cultura. Um exemplo é a Virada Cultural, que continua movimentando as ruas da cidade.

Leia, a seguir, a íntegra desta conversa:

Jornal da USP – Como o senhor vê as iniciativas em “prol” da cultura brasileira no atual contexto político?

Carlos Augusto Calil – A pauta política incendiária, com o acirramento do “nós contra eles”, domina as atenções e desvia o olhar de questões cruciais para a sobrevivência da nação democrática: respeitar os direitos dos índios, dos grupos sociais segregados, das minorias, zelar pelo meio ambiente, trabalhar com afinco para diminuir a desigualdade social, garantir a segurança dos cidadãos, sobretudo das classes desassistidas, melhorar o desempenho dos alunos nas escolas, garantir bom atendimento de saúde na rede pública, ampliar a cobertura de saneamento, a oferta de moradia popular, assegurar os meios para o desenvolvimento científico etc. Nesse etc. entram arte e cultura, como secundárias, irrelevantes, adjetivas. Essa é a visão corrente na sociedade, que se reflete no poder público, em todos os escalões. As pessoas não vivem sem a sua cultura, mas não se dão conta disso. Então ela parece uma extravagância de uma elite apartada dos problemas dos cidadãos comuns. Nada mais equivocado. Há um sentimento antielitista envenenando o ar que respiramos. Enfrentamos uma guerra não declarada contra a inteligência, a tolerância, o patrimônio simbólico nacional. Contra os princípios da democracia.

Um incêndio de proporções ainda incalculáveis atingiu, no começo da noite deste domingo (2), o Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, na zona norte da capital fluminense – Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil via Fotos Públicas CC BY-NC 2.0

Jornal da USP –  O que achou da iniciativa do governo em integrar a Secretaria de Cultura ao Ministério do Turismo? O que de fato isto significa? Pode ser o esvaziamento das políticas culturais?

Carlos Augusto Calil – O Ministério da Cultura desde sua criação foi politicamente irrelevante. Na verdade, foi um erro levar as instituições culturais federais para Brasília. Funarte, Embrafilme, Serviço Nacional de Teatro etc. estavam consolidados no Rio de Janeiro e não se curvavam ao governo militar; antes a ele resistiam de dentro da própria estrutura do Estado. A criação do Ministério da Cultura atendeu a uma dimensão da pequena política e teve um papel disruptivo na evolução das instituições. Foi um erro centralizar a política cultural oficial em Brasília. Mas ainda pior foi a criação da Lei Sarney, de incentivos fiscais, para atender à vaidade do então presidente. Ela era uma verdadeira aberração e foi defendida pelo ministro Celso Furtado. O Ministério da Cultura começou torto e nunca se afirmou. Nessa situação, agregar a cultura e a arte a um ministério social não era má ideia. Mas a questão não é conceitual, é política. Atualmente, as políticas públicas em benefício da arte e da cultura estão sendo castigadas, por seu suposto elitismo e viés ideológico. A transferência da Secretaria da Cultura para o Ministério do Turismo soa como rebaixamento, desprestígio, humilhação. Não porque sejam incompatíveis. Já houve no governo de estado de São Paulo nos anos 1970 uma Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo. O Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura de São Paulo, dirigido por Mário de Andrade entre 1935 e 1938, abrigava esportes, turismo, meio ambiente, planejamento e pesquisa social. No Reino Unido, Cultura, Esportes, Turismo e Comunicações integram uma mesma estrutura ministerial. Na França, o Ministério da Cultura é também das Comunicações.

 

A maior lição que aprendi na minha passagem pela Secretaria Municipal da Cultura foi a dimensão social da cultura e da arte.”

 

Jornal da USP –  O senhor, com a sua experiência na Secretaria da Cultura valorizando os espaços públicos, como vê as atuais iniciativas do governo em aliar a cultura a valores religiosos e ideologias?

Carlos Augusto Calil – O sentimento que o atual governo federal reflete é de que a Cultura é inimiga da religião, das instituições, da manutenção do poder constituído. A arte tem de fato a capacidade de promover a emancipação do indivíduo, o que pode incomodar um poder anacrônico, reacionário, expondo suas inconsistências e falácias. Mas há certo exagero nisso tudo.

A maior lição que aprendi na minha passagem pela Secretaria Municipal da Cultura foi a dimensão social da cultura e da arte, que passa pelo urbanismo, pelas condições de convivência entre os cidadãos, em “como viver junto”, na formulação de Roland Barthes. A Virada Cultural nos mostrou que é possível reunir milhões de pessoas no centro da cidade, de diferentes classes sociais, gostos artísticos, origens, idades, bagagem cultural, em torno da ideia de ocupar o espaço que é de todos. A prova de fogo da Virada Cultural se deu em 2006 quando a cidade estava ameaçada pelo PCC e a população não se intimidou. Foi às ruas celebrar a festa da cidade e da cidadania. A Virada Cultural foi a senha de uma demanda reprimida por ocupar o espaço público. Em seguida, vieram o Carnaval e a transformação da Avenida Paulista em passarela.

Jornal da USP – Como o senhor vê a arte brasileira com a sua projeção internacional ser subestimada internamente?

Carlos Augusto Calil – Esta é uma questão que perdura. Mário de Andrade já dizia que padecíamos de um complexo de inferioridade cultural. Nelson Rodrigues se referia ao mesmo sentimento como “complexo de vira-lata”. Ele decorre da colonização cultural, que reprimiu e ainda reprime nossa produção simbólica. Ela é mais acentuada no Sudeste e no Sul, onde se concentrou a imigração estrangeira. No Norte e no Nordeste, a consciência dos valores culturais locais é mais perceptível. A arte brasileira só é reconhecida no País quando é premiada ou valorizada no estrangeiro. Isso ocorreu com o Cinema Novo, por exemplo. Por outro lado, com relação ao exterior, o Brasil se comporta como se fosse uma imensa ilha cultural. Nossa presença internacional está muito aquém das nossas possibilidades.

 

Crises econômicas e políticas como as que enfrentamos hoje fragilizam a continuidade dos programas e a produção cultural.”

 

 Jornal da USP – Quais os desafios, na sua avaliação, que a cultura vem enfrentando? Como solucionar a falta de verbas, patrocínios e de subsídios do governo?

Carlos Augusto Calil – Até recentemente havia bastante recurso público disponível para atividades artísticas e culturais entre nós. Só no Estado de São Paulo, somando os investimentos do Sesc, das secretarias de Cultura do Estado e do Município atingíamos uma cifra anual próxima de 3 bilhões de reais. Já não é mais assim e no resto do País as dificuldades são maiores. Mas era recorrente a queixa de que o Ministério da Cultura não conseguia executar o orçamento modesto com que era contemplado pelos sucessivos governos.

O nosso maior problema é que quase não há investimento privado em cultura e arte entre nós, exceção feita ao Instituto Moreira Salles e ao Itaú Cultural. A exclusiva dependência do governo enfraquece a posição dos artistas e das instituições. Crises econômicas e políticas como as que enfrentamos hoje fragilizam a continuidade dos programas e a produção cultural. A sociedade brasileira tem de assumir um papel de contraponto e de complemento à ação governamental. E desse modo passar a exigir que o poder público cumpra com sua obrigação, sem se imiscuir nos projetos, direcionando-os ou censurando-os.

Havia pouca tradição de investimento privado na cultura, mas as leis de incentivo acabaram por eliminar as poucas empresas sensíveis a uma contribuição social. Com o governo oferecendo renúncia fiscal a 100%, às vezes a 125%, que empresa iria aplicar recursos próprios? Esse foi um grave erro cometido no governo de Fernando Henrique Cardoso, que alterou a Lei Rouanet. Nenhum governo que o sucedeu consertou esse equívoco. Aliás, o acentuaram, pois passaram a usar intensamente as estatais para promover cultura, com renúncia fiscal, uma contradição que esvaziava o Ministério da Cultura. Uma lei de parceria público-privada se tornou uma lei de transferência de recursos públicos ao setor privado, com um grau de liberalidade enorme.

Jornal da USP – Como as universidades podem colaborar em prol da Cultura?  Qual seria o nosso papel como universidade pública?

Carlos Augusto Calil – As universidades são muito fechadas e autossuficientes. Pouco se integram à sociedade. De certa forma se comportam como autistas. O papel da cultura e das artes ainda é muito restrito nos campi e fora deles. Esse é um terreno em que podemos avançar muito.

Jornal da USP – O que o Brasil perde diante da desvalorização da cultura brasileira?

Carlos Augusto Calil – O Brasil perde substância, sentido de coesão social, relevância política, capacidade de atrair investimento material e simbólico. Há uma generalizada atração pela cultura brasileira no exterior, a que nós não temos sabido corresponder.

 

Voltando à questão inicial: associar a Cultura ao Turismo pode ser bom para os dois, desde que o governo tenha consciência disso e aja com boa-fé. Infelizmente não é esse o caso.”

 

Jornal da USP – Nesta última década, o MAC USP, a Pinacoteca, as unidades do Sesc em geral e até os centros culturais como os do Banco do Brasil, Itaú, Caixa Econômica Federal vêm incentivando a visita das escolas e do público em geral às exposições e programações em geral. Até que ponto aliar cultura ao turismo pode ser um retrocesso na arte-educação?

Carlos Augusto Calil – A Itália vive de turismo cultural, a França tem uma renda enorme proveniente dessa atividade. Nova York transformou seus museus numa indústria de fazer dinheiro com cultura. O Brasil não possui um patrimônio cultural comparável, mas tem o maior museu de arte abaixo do Equador (Masp) e uma das primeiras Bienais do mundo. Mas sobretudo o Brasil tem um patrimônio ambiental que poderia atrair um turismo associado à cultura. O que estamos fazendo com ele? Estamos destruindo a Amazônia, o Cerrado; as nossas praias estão sendo inundadas de óleo e o governo federal não reage. Voltando à questão inicial: associar a Cultura ao Turismo pode ser bom para os dois, desde que o governo tenha consciência disso e aja com boa-fé. Infelizmente não é esse o caso.

MASP – Foto: Francisco Emolo / Arquivo Jornal da USP

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Museu de Arte Contemporânea – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Jornal da USP – Em recente entrevista com Edgar Morin, ele destacou a importância de compreender que a arte e a ciência devem caminhar juntas. Mas por que fica tão difícil para os governantes deixar a ciência no mesmo patamar da arte?

Carlos Augusto Calil – Em 30 anos de atuação em instituições culturais do governo e na universidade, cheguei à mesma conclusão de Morin por outros meios. A arte e a ciência em última instância produzem protótipos, inventos originais, que hoje estão sob a cobertura do que se chama “inovação”. O espírito investigativo do cientista é o mesmo do artista e principalmente os mecanismos de financiamento se assemelham muito. Haveria um ganho mútuo na convivência de Cultura com Ciência na mesma estrutura política e administrativa. Em 1975, o governo do Estado de São Paulo criou uma Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, cujo primeiro titular foi José Mindlin, perfeito para o cargo. Infelizmente ele durou pouco, atropelado politicamente pelo assassinato de Vladimir Herzog.

Jornal da USP – Para o senhor, com a sua experiência como professor, cineasta, divulgador, defensor e ex-secretário da Cultura, o que falta os governantes entenderem?

Carlos Augusto Calil – Que a cultura não é um escaninho administrativo e nem uma “brincadeirinha” como disse o prefeito Prestes Maia ao demitir Mário de Andrade da direção do Departamento de Cultura. A cultura é parte natural da vida e a arte e a criação são experiências de transformação essencial ao desenvolvimento humano. Os componentes culturais estão presentes em todas as atividades humanas. A cultura permeia a vida social.

Jornal da USP –  Professor, agora uma pergunta pessoal. Como vai o senhor, quais as suas atividades atuais na Universidade e na Cultura? E como está o seu cotidiano lecionando na Columbia University?

Carlos Augusto Calil – A professora Esther Hamburger e eu estamos na Universidade Columbia neste semestre como Tinker Visiting Professors, com a obrigação de dar aulas semanais e palestras sobre a produção audiovisual brasileira dos últimos 35 anos. Apesar do trabalho intenso, a experiência é marcante pois podemos constatar como os alunos percebem o Brasil a partir da sua representação no cinema e na televisão. E de certa forma descobrem nossa complexidade e nossa potencialidade. Pena que a situação política tanto nos EUA quanto no Brasil seja tão deprimente. Mas esse pesadelo há de passar. Em compensação, podemos aproveitar a cidade e sua inesgotável oferta cultural. Se alguém tiver dúvida sobre a potência da arte e da cultura basta passar um fim de semana em Nova York.

 

Por Leila Kiyomura e Marcello Rollemberg

 


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