O CNPq e a ciência no Brasil

Por Mauro Bertotti, professor titular do Instituto de Química da USP

 30/08/2019 - Publicado há 5 anos

Mauro Bertotti – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) é o maior fomentador da pesquisa nacional em todas as áreas do conhecimento. As atividades de pesquisa são desenvolvidas tipicamente em laboratórios ou salas de estudo, via de regra por alunos de graduação e pós-graduação, sob orientação de um professor. Muitos alunos trabalham à noite, nos fins de semana e em feriados porque gostam do que fazem, são responsáveis e têm noção de que as bolsas são oriundas de recursos públicos. Para muitos destes alunos, a bolsa é a única fonte de renda e eles dependem exclusivamente dela para se sustentar. A bolsa é um benefício concedido pela agência de fomento como contrapartida ao trabalho exclusivo de pesquisa, ou seja, os detentores da bolsa não podem manter outro vínculo empregatício. As bolsas são concedidas por mérito e com base na avaliação do currículo e do projeto, e um contrato denominado “termo de outorga” define explicitamente a duração do projeto e do financiamento. O valor dessas bolsas varia de R$ 400 (graduação) a R$ 2.200 (doutoramento).

Por que os alunos desenvolvem pesquisas? Há duas razões. A primeira tem relação com o processo formativo de um cientista. Durante a execução do projeto, o aluno toma contato com o método científico e aprende a lidar com problemas, criar e testar hipóteses, empregar ferramentas apropriadas, redigir relatórios e artigos científicos e expor os resultados de seus trabalhos para a comunidade científica. A outra razão para o desenvolvimento de pesquisas por alunos é que, na prática, são eles que executam experimentos e desenvolvem ideias discutidas previamente com os professores, atarefados com aulas, formulários para preencher, reuniões administrativas e busca de financiamento para os projetos. Os alunos têm paixão pelas descobertas, a mente está pronta para ser fertilizada e eles têm a ousadia que às vezes não acompanha seus orientadores. Há alunos que se destacam e, durante o doutoramento, já possuem o discernimento para buscar soluções alternativas para problemas não triviais. É nesse processo construtivo e de longos anos que se formam os cientistas.

A pesquisa custa caro, especialmente se tiver como objetivo competir com instituições do exterior. Cabe então a pergunta: vale a pena investir em ciência, inovação e na formação de cientistas? É evidente que sim, pois a ciência é o motor da prosperidade. Os carros, trens e aviões, os telefones inteligentes, a energia que ilumina as cidades, as roupas que vestimos, a comida que comemos e os remédios que tomamos foram desenvolvidos e aperfeiçoados por meio de pesquisas. Não é por outra razão que a expectativa de vida do ser humano praticamente dobrou desde a Revolução Industrial, há 200 anos. Todavia, antes de os carros, celulares e computadores existirem, os pesquisadores estudavam os conceitos fundamentais que forneciam uma base sólida para o desenvolvimento do conhecimento. Mais importante é o fato de que os cientistas não necessariamente sabiam como as descobertas poderiam ser transformadas nos produtos que hoje adquirimos para o nosso bem-estar. Seguramente Einstein não estava pensando em um GPS ou smartphone quando formulou sua Teoria da Relatividade há pouco mais de 100 anos. Mas saber como funciona a relação entre espaço e tempo foi fundamental para tornar muito precisas as nossas medições com os satélites que orbitam a Terra.

Fornecer apoio regular para a pesquisa básica deveria ser uma prioridade nacional para estabelecermos uma visão de longo prazo sobre pesquisa e desenvolvimento visando ao futuro da nação em um mercado global cada vez mais competitivo. Mas pesquisa leva tempo, especialmente em áreas de ponta nas quais os caminhos ainda não foram trilhados e onde os riscos são muito mais elevados. A despeito da importância da pesquisa para o Brasil, existe crescente possibilidade de mais de 80 mil bolsas não serem pagas a partir de setembro. Curioso é o fato de o presidente do CNPq, assim como os ministros da Educação, Ciência e Tecnologia e o da Economia, todos revestidos de autoridade institucional por exercerem altos cargos na administração federal, não manifestarem preocupação com o tema, criando, por exemplo, uma forte agenda junto ao Congresso.

Em um país que já conta com 13 milhões de desempregados, a falta de pagamento de bolsas de estudo pelo CNPq a partir de setembro vai piorar essas estatísticas. A notícia é ainda mais alarmante pelo fato de esta possibilidade de cortes já estar sendo veiculada desde o começo do ano, sem que tenha sido desenhada, pelos atores relevantes, alguma articulação que minimamente pudesse se contrapor às ameaças. Agora, estamos à beira do precipício. Qual é a motivação de um futuro cientista ao saber que seus proventos podem cessar daqui a algumas semanas? Qual é a mensagem implicitamente enviada aos jovens que ora estão prestes a ingressar na universidade?

As universidades públicas possuem parcela de culpa na presente situação por não terem conseguido, ao longo dos anos, demonstrar aos políticos e à sociedade a importância da pesquisa básica para o desenvolvimento da nação. Embates de natureza ideológica têm, muitas vezes, gerado na universidade uma polarização que não contribui para o seu pleno desenvolvimento. Assim, a busca de uma nova agenda propositiva das universidades públicas, acossadas atualmente pelos governos estaduais e federal, se faz cada vez mais necessária. A interlocução deve passar, necessariamente, pelo reconhecimento dos governantes da relevância da ciência como mola propulsora do desenvolvimento do País. Todavia, a construção de tal agenda será, infelizmente, um processo lento e custoso e, como já frisado, existe um problema mais premente. Não é aceitável, em hipótese alguma, que a ameaça de corte das bolsas do CNPq a partir de setembro se concretize. Os alunos assinam um contrato com o governo federal e, a partir daí, programam sua vida para longo prazo. Alguns mudam de estado, outros até de país. O contrato não pode ser rompido unilateralmente e se isso for feito, deverá ser tratado como ato imoral.

“Imoral” é um adjetivo com origem no latim immoralis, e significa atitude contrária à moral, ou seja, o termo é empregado quando não são seguidas as normas de conduta estabelecidas. A mesma ameaça não parece pairar sobre os salários de deputados e senadores, a despeito da crise econômica.

A preocupante situação econômica do Brasil não é um fato novo e o atual governo tem tentado minimizar os impactos com diversas ações e reformas. Sabe-se que a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe limites de gastos, mas, se houver vontade política, deve ser possível fazer um arranjo orçamentário que viabilize o pagamento dos bolsistas. Trata-se de uma demonstração de coerência às regras, disposição para mudar paradigmas no País e criação de verdadeiras Políticas de Estado, completamente distintas das que permitiram, por exemplo, a construção de suntuosos estádios em regiões sem apelo futebolístico a custos que chegaram à casa de alguns bilhões de reais. Para fins de comparação, os recursos para o pagamento das bolsas de dezenas de milhares de pesquisadores até o fim do ano somam a monta de 330 milhões de reais.

Se as questões de pequena relevância que têm se tornado manchetes nos veículos de comunicação forem trocadas por atos de grandeza institucional, poderemos alimentar esperanças de que o governo realmente acredita que a ciência é uma ferramenta para explorar e inovar, viabilizando o crescimento econômico do Brasil e pavimentando um caminho para os jovens. Nesse contexto, seria louvável que nossos políticos prestassem atenção a um comentário feito por ex-reitor da prestigiosa Universidade de Harvard: “Se você acha que a educação é cara, experimente a ignorância”. Talvez seja essa a intenção.

 


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