Subversão e descentramento: redes de dormir como tema de exposição

Diana Vidal é professora titular da Faculdade de Educação e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP)

 24/05/2019 - Publicado há 5 anos

Diana Gonçalvez Vidal – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

No embalo das redes, o movimento de vai-e-vem acalanta. Recria no corpo a sensibilidade para modos ancestrais de repouso. Em nossa sociedade urbana, em que a menção a redes remete imediatamente aos relacionamentos pessoais, no ambiente digital ou no cotidiano das sociabilidades, tomar as redes de dormir como tema para uma exposição é em si mesma uma forma de subversão. Subversão não apenas porque descentra o olhar, privilegiando fazeres tradicionais e populares da cultura; mas porque recusa o primado da identidade da autoria como princípio organizador da expografia. Nesse sentido, lança um desafio: reajustar as lentes do observador, desfocando do todo, para encontrar na parte a coerência e a coesão da mostra.

De maneira similar ao vai-e-vem do balanço das redes, a exposição convida a contemplar alternadamente o particular e o geral. Provoca assim o esforço intelectual de circunscrição do micro, de captação de suas especificidades, e de sua reinserção no macro, incitando interrogantes sobre o lugar que a rede de dormir ocupa e as tramas que lhe atribuem sentido e a contextualizam em cada obra.  Simultaneamente a mostra se faz lúdica. O balançar que provoca o riso da criança conhece seu duplo no sorriso de todas as gerações mobilizadas nesse jogo de “esconde-esconde” ou, diria, de “busca-busca”. Encontrar a rede torna-se o mote da brincadeira a que o frequentador do espaço expositivo é convidado a se engajar.

Não foi diferente o espírito que animou a participação dos especialistas do Instituto de Estudos Brasileiros, quando instados a localizar as 42 obras emprestadas para compor o todo de mais de 300 objetos da Exposição Vaivém, de curadoria de Raphael Fonseca, inaugurada no Centro Cultural Banco do Brasil, neste 22 de maio, em São Paulo. Percorrer o acervo do IEB, rastreando imagens de redes de dormir, foi um empreendimento que incitou a imaginação e revelou as potencialidades do Instituto. Por um lado, proporcionou novas rotas de pesquisa, evidenciando apropriações diversas do conjunto documental ali guardado. Por outro, deu substância ao caráter interdisciplinar do IEB e conferiu visibilidade à sua característica singular de reunir em um mesmo espaço setores tão diversos como Arquivo, Biblioteca e Coleção de Artes Visuais, unidos na preservação da memória e das culturas brasileiras.

A contribuição do IEB concentra-se nos séculos XVI a XX e provém fundamentalmente das coleções Yan de Almeida Prado e Mario de Andrade

Mas, mais que tudo, o exercício divertiu. Rever obras “familiares” e nelas “descobrir” novas leituras foi estimulante. Teve não apenas o efeito de renovar a produção de conhecimento no interior da instituição, como de instigar o desejo dos especialistas em aventurarem-se em rotas inesperadas no tráfego pelo acervo, explorando novas possibilidades para investigação no IEB. O repertório inesgotável de temas que atravessa as obras sob a guarda do Instituto fascina e incita a imaginação. As redes de dormir são apenas um dentre muitos exemplos.  Afinal as culturas e as identidades brasileiras constituem o cerne da reflexão promovida pelo IEB em seu Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação.

A mostra Vaivém percorrerá ainda as cidades de Brasília, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, completando um ciclo que se encerra em maio de 2020. Reúne 141 artistas, dentre eles, 32 indígenas, e integra um conjunto variado de objetos que se estendem de pinturas, esculturas, instalações, fotografias, vídeos, documentos, intervenções e performances a HQs e selos e abarcam um arco temporal de seis séculos. A contribuição do IEB concentra-se nos séculos XVI a XX e provém fundamentalmente das coleções Yan de Almeida Prado e Mario de Andrade.

As mais antigas obras cedidas para a exposição datam da década de 1550. A primeira, de Giacomo Gastaldi, consiste em um mapa do Brasil, elaborado em 1556 e editado na República de Veneza no ano de 1565. A gravura em metal colorido sobre papel, com dimensões de 29,7 X 38,8 cm pertence à Coleção de Artes Visuais. A segunda, trata-se de Les singularitez de la France antarctique autrement nommee Amerique, & de plusieurs terres & isles decouvertes de nostre temps (Paris: Heritiers de Maurice de la Porte), do frei André Thevet, e faz parte da Biblioteca. Em sua curta temporada de apenas 10 semanas na baia de Guanabara, este capelão militar de Nicolas Durand de Villegagnon, registrou/recriou a natureza e os povos americanos da França Antártica. Os escritos foram acompanhados de ilustrações do gravador Jean Cousin e de outros desconhecidos em torno de três temas básicos: os costumes americanos, os animais e as plantas.

A estas obras acrescentam-se trabalhos de autoria de Joan Blaeu,  Johann Baptiste von Spix & Carl von Martius, Johann Moritz Rugendas, Johann Theodor de Bry, Thomas Marie Hippolyte Taunay, Maximilian Alexander Philipp Wied-Neuwied, todos integrantes da coleção de Yan de Almeida Prado. O empréstimo se completa com objetos da coleção Mario de Andrade, dentre eles, a gravura em metal sobre papel, com dimensões de 25,0 X 31,6 cm, datada de 1930, na qual Lasar Segall representa o próprio Mário de Andrade semi-recostado em uma rede de dormir.

O convite, que aqui se expressa, para conferir a exposição é também um chamamento a uma nova exploração do acervo do IEB, na tessitura de outras redes, onde o sabor da descoberta embala a pesquisa e o prazer do encontro acalanta o pensamento.

Mais informações encontram-se em http://culturabancodobrasil.com.br/portal/vaivem/

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