Além de ser restaurada, a edição da Opera Omnia, de Duns Escoto, datada de 1639, que faz parte do acervo da Faculdade de Direito da USP, foi submetida a processos químicos e físicos que comprovaram a procedência do papel e as técnicas de confecção dos 12 volumes da coleção – Foto: Divulgação/IF-USP
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Possivelmente uma das únicas coleções completas do mundo, a Opera Omnia do filósofo e teólogo medieval João Duns Escoto (1265-1308), publicada em 1639 em 12 volumes, está sob a guarda da biblioteca da Faculdade de Direito da USP – o conjunto de livros da mesma edição encontrado no Canadá tem apenas cinco volumes, e outro, da biblioteca da Universidad Complutense de Madrid, seis. Antes em estado de conservação bastante comprometido – alguns volumes estavam infestados de micro-organismos e outros tinham muitas das folhas soltas –, a obra passou por um processo de recuperação, que incluiu uma pesquisa histórica sobre as técnicas adotadas em sua confecção.
Foram três anos desde a aprovação do projeto de reparação da obra, em 2016, até sua conclusão, em janeiro deste ano. Maria Lucia Beffa, chefe técnica da biblioteca da Faculdade de Direito da USP, explica que a política da biblioteca está baseada na mínima intervenção sobre as obras, ou seja, o restauro é feito apenas quando elas correm algum risco de perda, que era o caso da coleção de Duns Escoto. Segundo ela, na década de 30 foi criada uma sessão de encadernação na Faculdade de Direito que, muito provavelmente, fazia também restaurações com as técnicas da época. “Eu li nos relatórios que estavam restaurando os livros dentro das melhores técnicas, porém não dá para afirmar que esses livros não tenham sofrido intervenções anteriormente”, conta. Maria Lucia lembra que alguns dos 12 volumes apresentavam praticamente todas as folhas soltas, e outros nem dava para abrir. “O estado da obra, sua origem e valor histórico levaram à decisão por sua recuperação”, afirma.
Segundo o professor José Carlos Estêvão, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, essa coleção do século 17 é a primeira edição da obra completa de Duns Escoto. Estevão conta que ela foi adquirida pouco antes da fundação da Faculdade de Direito, ocorrida em 1827, quando o então governo provincial comprou toda a biblioteca do Convento dos Franciscanos, com cerca de 5 mil volumes – um número expressivo para a época –, que formaram o núcleo inicial da biblioteca da faculdade. Entre as obras adquiridas estava a a coleção do pensador medieval.
“É uma edição muito bonita, com excelentes ilustrações. Era absolutamente necessário restaurá-la porque continua sendo muito importante para os estudos de História da Filosofia Medieval”, afirma Estevão, que leciona essa disciplina. Há cerca de dez anos, segundo ele, os alunos usavam essa edição da biblioteca da Faculdade de Direito, mas atualmente, para preservá-la, utilizam uma edição fac-similar do acervo da Biblioteca Florestan Fernandes da FFLCH. O professor ainda informa que há uma nova edição completa das obras de Duns Scoto, contendo de 25 a 30 volumes, sob coordenação da Editora do Vaticano. Parte dessa nova coleção está disponível na biblioteca da FFLCH.
Duns Escoto é um filósofo e teólogo da tradição escolástica, que deve ter nascido por volta de 1265 (a data é incerta) e morreu em 1308, sendo beatificado em março de 1993 pelo papa João Paulo II. “Duns Escoto era um franciscano que se opunha, na época, frontalmente aos dominicanos, e isso quer dizer que ele formulou uma filosofia fortemente oposta à de Tomás de Aquino”, explica o professor. Cada um tem enfoques totalmente diferentes sobre a relação entre a razão e a fé. “São extraordinariamente respeitosos da racionalidade filosófica segundo as concepções aristotélicas, prevalecentes naquele momento, na Idade Média latina”, diz Estêvão.
“Muito influenciado por Duns Escoto, Guilherme de Ockham, apesar de próximo das suas concepções, o criticou muito e construiu uma outra concepção filosófica bastante diversa e com uma importância histórica enorme”, continua o professor. No fim do século 14 e começo da Modernidade, pode-se dizer, segundo Estevão, que existe na escolástica medieval três filosofias: a de Tomás de Aquino, a de João Duns Escoto e a de Guilherme de Ockham. “Os três com concepções filosóficas que se afastam muito uma da outra, mas que são absolutamente determinantes para todo o desenvolvimento da filosofia posterior”, ressalta. Escoto tem também um impacto na filosofia contemporânea, diz o professor, citando o alemão Martin Heidegger e o francês Gilles Deleuze como dois grandes filósofos do século 20 que se dedicaram ao estudo de seu pensamento.
Processo de restauração
O projeto contemplava não só a recuperação da Opera Omnia de Duns Escoto, mas ia além, incluindo a pesquisa histórica sobre a manufatura dos livros. A conservadora e restauradora Julita Azevedo, responsável pelo trabalho, conta que, sabendo do valor histórico da obra, dividiu sua proposta – escolhida entre outros dois projetos – em dois eixos: a conservação e restauração dos livros e a pesquisa histórica sobre a manufatura dos volumes. A intenção era, principalmente, descobrir onde havia sido feito o papel usado no livro, quais eram as fibras desse papel e quais eram os elementos químicos das tintas usadas na impressão, visando a aprofundar o conhecimento referente às técnicas de confecção.
Primeiro, em seu ateliê, os volumes foram encaminhados para numeração das páginas e mapeamento dos cadernos, a fim de evitar problemas de ordenamento do material. Julita conta que, no material original, as folhas não foram numeradas (a sequência era marcada repetindo na página a última palavra da página anterior) e não havia capa – somente quase um século depois é que se fez a encadernação. Os livros foram então desmontados e higienizados folha por folha. Os bifólios (duas folhas unidas que, dobradas, vão formando o caderno) foram carcelados (a carcela é uma tira de papel japonês que é colada no centro do bifólio e serve para deixar o local mais resistente, pois é a área em que passa a linha da costura) e escaneados para recorte dos enxertos. Em seguida, foram restaurados com papel japonês, remontados e costurados seguindo a mesma técnica usada no passado, com cadarço de pergaminho, além do uso de uma cola neutra produzida pela própria Julita a partir de técnicas japonesas.
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Segundo Julita, a maior parte do tratamento foi realizada a seco. “Das mais de 5 mil folhas da coleção, apenas 2% foi submetida a um banho aquoso”, informa. A novidade, diz, está no desenvolvimento de um novo processo de reconstituição do suporte através da utilização de uma máquina Scancut. Muito utilizada em empresas de comunicação visual, essa máquina, de grandes dimensões, ganhou uma versão japonesa compacta para fins de produção artesanal, que serviu como um scanner que, além de copiar a imagem, depois de um trabalho no Photoshop, recortava o papel na forma exata para os enxertos da parte danificada das folhas. “O primeiro livro demorou seis meses para ficar pronto, e os demais levaram cerca de dois meses, agilizando o processo e com um resultado mais perfeito”, relata, lembrando que cada volume teve dificuldades peculiares para ser restaurado.
Dois volumes, que tinham maior nível de deterioração, foram enviados para o Centro de Tecnologia das Radiações (CTR) do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), a fim de serem submetidos à irradiação de cobalto para tratamento de desinfestação. Depois, foi feito um procedimento chamado análise de composição fibrosa, realizado no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Três fragmentos do papel foram submetidos a uma avaliação segundo norma da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). As amostras foram desagregadas, colocadas sobre uma lâmina de microscópio e coloridas com reagente químico, permitindo a obtenção de fotomicrografias.
O resultado foi a comprovação da origem do papel, manufaturado com fibras provenientes do algodão, também conhecido como papel trappo. “Até o século 18, todos os papéis eram fabricados com restos de tecidos, como lençóis, cortinas e roupas. O material era enviado a moinhos e o papel era produzido a partir de fibras de algodão, linho ou cânhamo. Depois se desenvolveu o método para fabricação a partir da madeira”, explica Julita.
Outra série de estudos foi realizada no Instituto de Física da USP, para descobrir os elementos químicos presentes no papel e na tinta. Esses estudos ainda estão em fase de conclusão. Finalmente, através de uma pesquisa acerca da filigrana ou marca d’água contida em várias folhas dos livros, foi possível descobrir o moinho papeleiro onde o papel foi produzido. A obra é proveniente de um pólo de impressão do século 17, na cidade de Lyon, na França, pertencente a Laurent Durand. Descobriu-se ainda, na leitura dos volumes, que o editor foi Lucas Wadding, um franciscano e grande conhecedor da obra de João Duns Escoto, e, através de pesquisas, que o moinho de papel pertencia à família Lebé, localizado na cidade de Troyes, a cerca de 300 quilômetros de Lyon.
“Quanto mais você conhece da obra, melhor você consegue restaurá-la”, afirma Julita, que ainda confeccionou uma caixa em linho para acomodar cada volume, com uma etiqueta em pergaminho escrita em nanquim. “Agora vai durar mais 400 anos”, brinca a restauradora. Para Maria Lucia Beffa, chefe técnica da Biblioteca da Faculdade de Direito, a análise de todos os elementos (papel, tinta, fibra e filigrana) comprova o seu valor histórico e ajuda a conhecer melhor a coleção, que está novamente disponível para consultas de pesquisadores e interessados na obra.
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