Livro documenta a “vida póstuma” de Machado de Assis

Organizado por pesquisadores da USP, volume reúne seleção de textos de grandes escritores do século 20 sobre o autor imortal

 23/04/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 25/04/2019 as 11:11
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Machado e seus intérpretes e comentadores: processo de monumentalização da obra do escritor teve início nos primeiros momentos após a sua morte, em 1908 – Foto: Reprodução/IMESP

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“A verdadeira história de um escritor principia na hora da morte, e de nós depende em grande parte a sua sobrevivência”, afirma o professor Hélio de Seixas Guimarães, citando uma frase de Augusto Meyer para retratar a importância do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, “que desde 29 de setembro de 1908 vem ganhando novas dimensões e interpretações as mais diversas”. O escritor, poeta, romancista, cronista, dramaturgo, jornalista e crítico literário Machado de Assis (1839-1908), considerado por muitos críticos e estudiosos o maior nome da literatura do Brasil, é tema das pesquisas realizadas por Guimarães, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e pesquisador associado da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), também da USP, que resultam agora no primeiro volume de Escritor por Escritor – Machado de Assis Segundo seus Pares 1908-1939 (Imprensa Oficial).

O livro, que também é organizado pela pesquisadora Ieda Lebensztayn, traz reportagens, artigos, crônicas, poemas e cartas de escritores, jornalistas e críticos como Rui Barbosa, Artur Azevedo, Euclides da Cunha, Osório Duque-Estrada, Olavo Bilac, José Veríssimo, Lima Barreto e Mário de Andrade. Como escreve Guimarães na apresentação, o livro “documenta a sobrevivência de Machado de Assis ao reunir uma seleção de textos produzidos por escritores que publicaram sobre ele a partir do dia em que o homem se extinguiu para sempre, cedendo lugar ao autor, potencialmente, imortal”. A obra é resultado de uma extensa pesquisa realizada no Rio de Janeiro e em São Paulo, na biblioteca e no arquivo de Plínio Doyle, sob a guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa, na Fundação Biblioteca Nacional, na BBM e no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

“São páginas memoráveis, organizadas de maneira inteligente e sensível, em que se encontrarão desde textos de apreciação estética até cenas teatrais e poemas; desde louvações até críticas que, ao revelarem certo azedume em relação a Machado, expõem mais a personalidade de quem as escreve do que, propriamente, a do autor que os ocupa”, afirma Marta de Senna, da Fundação Casa de Rui Barbosa, na orelha do livro. Segundo o organizador, em alguns casos, lemos depoimentos de quem conheceu e conviveu com Machado de Assis. “Essa proximidade nos permite entrever feições pouco acessíveis na imagem posteriormente cristalizada do escritor, difundida por meio de biografias e retratos. Neles, Machado quase invariavelmente aparece como um homem grave, distante e, por vezes, sisudo. Aqui, vários depoimentos evocam um Machado francamente risonho”, conta.

O organizador cita como exemplo o escritor Artur Azevedo, que conviveu com Machado durante 54 anos de trabalho na mesma repartição pública, que se recorda: “Alegre, cheio de vivacidade, eternamente rapaz, dizendo um bom dito a propósito de tudo, e rindo, rindo sempre”. Guimarães ainda cita o memorialista brasileiro Medeiros e Albuquerque, que, “fazendo a ligação do homem com a obra, refere-se a um riso para dentro, compenetrado da dimensão trágica da existência, que confina com o recurso ao humorismo, já na década de 1880 destacado como singularidade da obra machadiana”.

Artigos que eternizam

“Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras (Rio de Janeiro), não acreditaria que estivesse tão próximo o desenlace da sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dizia o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras – ontem meninas que ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de família – comentava-lhe os lances encantadores da vida e relia-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados nos álbuns caprichosos. As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam os olhos marejados de lágrimas, e a placidez era completa no recinto, onde a saudade glorificava uma existência, antes da morte”, escreveu Euclides da Cunha no Jornal do Commercio, de 30 de setembro de 1908.

No discurso de despedida, Rui Barbosa disse: “Designou-me a Academia Brasileira de Letras (ABL) para vir trazer ao amigo que de nós aqui despede, para lhe vir trazer, nas suas próprias palavras, num gemido de sua lira, para lhe vir trazer, o nosso ‘coração de companheiros’. Eu quase não sei dizer mais, nem sei que mais se possa dizer, quando as mãos que se apertavam no derradeiro encontro se separam desta para a outra parte da eternidade” (30 de setembro de 1908).  Passado um ano da morte do escritor, por iniciativa da ABL, realizou-se uma cerimônia em sua homenagem, em que Olavo Bilac discursou: “Poucas palavras, poucas e carinhosas, devem ser ditas aqui, para que em tudo a comemoração seja digna do comemorado. Seria uma ofensa à memória do mestre qualquer manifestação que destoasse da sobriedade encantadora e do recato severo que governaram a sua vida artística e a sua vida íntima, a sua teoria literária e o seu estilo.”

O livro lançado pela Imprensa Oficial – Foto: Reprodução/IMESP

Como afirma o organizador, no percurso dos textos, vamos testemunhando esses processos de monumentalização, patrimonialização e consagração empreendidos por seus pares. “Já no discurso fúnebre Rui Barbosa previa a ‘transfiguração na eternidade e na glória’, como quem anuncia, ao pé do corpo morto de Machado de Assis, a galeria de figuras machadianas a serem construídas na posteridade. No dia seguinte à morte, Artur Azevedo proclama o início da imortalidade, reconhecendo nos livros o ‘melhor do nosso patrimônio literário’, a ser guardado e transmitido às gerações vindouras”. Ainda segundo Guimarães, é preciso considerar também que “os sucessores não são receptáculos passivos de sua obra, mas leitores ativos que relegitimam e ressignificam a obra e a figura machadianas, agentes importantes para sua integração num novo sentido de tradição”.

O próximo volume da obra, que vai abordar o período entre 1940 e 2008, reunirá ensaios de autores como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Ariano Suassuna e Guimarães Rosa, além do contemporâneos Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles e Milton Hatoum, entre outros.

Escritor por Escritor – Machado de Assis Segundo Seus Pares 1908-1939, organizado por Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn  (Imprensa Oficial, 408 páginas, R$ 80,00). Mais informações neste link


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