A Universidade além do espelho

Eugênio Bucci é professor titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP)

 24/10/2018 - Publicado há 6 anos
Eugênio Bucci – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Como integrante do grupo encarregado de pensar o futuro da USP, constituído no âmbito do Instituto de Estudos Avançados pelo nosso diretor, Paulo Saldiva, pude conviver com algumas das maiores inteligências da universidade brasileira na atualidade: Luiz Bevilacqua, ex-reitor da UFABC, Naomar de Almeida Filho, ex-reitor da Universidade Federal do Sul da Bahia, e os professores da USP Henrique von Dreifus, Guilherme Ary Plonski, Caio Dantas, Elizabeth Balbachevsky, Arlindo Philippi Jr. e Roseli de Deus Lopes. Nosso trabalho legou um bom resultado. Agora, o relatório de conclusões do nosso grupo, USP: proposta de uma agenda para o futuro, com redação coordenada por Luiz Bevilacqua, foi apresentado e debatido num seminário que se estendeu por toda a tarde, no dia 10 de outubro, no IEA.

Numa das mesas – Avaliação e excelência. Conexões com a sociedade –, expus um breve comentário sobre a necessidade de expandir e estimular o espaço dado à Filosofia e à Arte dentro da universidade. Nessas duas esferas, a da Filosofia e a da Arte, teríamos um contraponto imprescindível ao discurso da ciência. Quando se trata de estabelecer diretrizes para as nossas atividades, para a nossa relação com a sociedade, com o mercado, com o Estado e com a comunidade internacional, o contraponto a que me refiro deveria ser, aos meus olhos, obrigatório. Não é possível pensar o papel e o lugar da universidade, inclusive sobre a sua produção científica, se não incorporarmos as dimensões da Filosofia e da Arte no interior mesmo daquilo a que chamamos de “espírito da universidade”. Então, na minha participação no dia 10, eu lancei uma pergunta: parâmetros científicos bastariam para pensar sobre produtividade ou para medir a excelência?

Tratei dessa inquietação de modo um tanto apressado, dadas as limitações de tempo e de formato das mesas em um seminário conciso. Só o que pude fazer foi pontuar indagações. Ao final da minha apresentação, o superintendente de Comunicação Social da USP, Luiz Roberto Serrano, me convidou para escrever este artigo, convite que aceitei com alegria. Eis aqui o artigo solicitado.

Aviso desde logo que, também neste texto, não tenho como aprofundar a questão, que requer um fôlego maior. Não entrego aqui o aprofundamento por dois motivos: quanto à forma, o espaço de um artigo de jornal, ainda que mais alentado, não se presta a formulações mais longas; quanto ao conteúdo propriamente, o limite vem da aridez do meu repertório teórico, isto é, eu, sozinho, não daria conta de um empreendimento intelectual tão ambicioso. Dou conta, isto sim, de alertar para a necessidade de pensarmos a respeito. Fora o quê, deveríamos contar com outras vozes, outras abordagens, outras colaborações. Fica lançada a sugestão: novas falas serão bem-vindas. De que modo a Filosofia e a Arte existem – ou devem existir – dentro da Universidade? Como essas duas esferas comparecem ao debate sobre Avaliação e Excelência?

O presente artigo se alinha com os parâmetros dados pelo relatório coordenado por Luiz Bevilacqua. Aqui, encaminho um convite à comunidade, é certo, mas em sintonia com os diagnósticos e as proposições que constam do nosso relatório. A elaboração ligeira, aqui contida, inscreve-se como parte e como prolongamento das ideias que o relatório tão bem encadeia. Aliás, o texto final do nosso documento menciona expressamente a necessária presença da Filosofia e das Humanidades no coração da Universidade. Literalmente: não é de forma alguma menor a importância da filosofia, da política e das artes no processo de transformação que vivemos”. É nesse sentido que este breve artigo se irmana com as melhores ambições do texto final que apresentamos no dia 10 de outubro.

Ainda a esse propósito, cito uma vez mais o nosso líder, Luiz Bevilacqua. Ele costuma se valer de uma metáfora para ilustrar a missão do nosso grupo. Seria nosso papel, ele provoca, pôr “a universidade diante do espelho”. Aproveitando a boa deixa, é por aí que começo, pelo espelho.

Quando olhamos para a Filosofia ou para as Artes, eu diria que, uma vez postos diante do espelho, não devemos nos contentar com o que os olhos nos informam. Devemos nos atrever a atravessá-lo. Mais do que explorar os ângulos possíveis e as distorções de imagem que o espelho nos proporciona, devemos transpassá-lo. Pode parecer uma meta absurda, mas peço calma ao leitor. Em alguns momentos, posso assegurar, as tarefas acadêmicas requerem de nós que vislumbremos o que seria a universidade para além do espelho.

Literalmente: ‘não é de forma alguma menor a importância da Filosofia, da Política e das Artes no processo de transformação que vivemos’.

Pergunto, pois: como olhar as coisas do nosso universo mergulhando em lógicas que não fazem parte das ilusões especulares, daquilo a que nos habituamos a chamar de realidade? De um lado, a prudência e a imprudência nos impeliriam a nos socorrer na Arte. De outro, precisaríamos invocar o pensamento crítico, aquele não vinculado à razão técnica, aquele que não é contido pela ciência e que, em lugar da ciência, inscreve-se na esfera da filosofia. Filosofia, como bem sabemos, não é ciência – o estudo filosófico que se baliza pelas leis da ciência se amofina.

Passemos agora ao auxílio luxuoso desse pandeiro chamado Arte. Ela guarda soluções que nos conduzem para além do espelho. Valho-me de três dessas soluções. Vou encontrá-las na literatura. Falo de Lewis Carroll, de Borges e de Drummond. O primeiro tratou da transposição do espelho materialmente, ao imaginar uma situação insólita em que sua personagem, Alice, cruzando a lâmina de vidro, aquela “brilhante névoa prateada”, ingressa em – para usar uma expressão em voga – outra dimensão, onde os vetores de sentido parecem não ter sentido algum, pois desmontam qualquer expectativa de plausibilidade.

O segundo, Borges, imaginou o seu Aleph como um orifício, ou um portal, que se abriu de repente sobre a epiderme do visível para revelar, num instante mágico, o avesso de todos os enigmas que intrigam a mente humana. No “aleph”, um ponto minúsculo, estariam concentrados todo o tempo e todo o espaço; todos os livros jamais escritos caberiam lá numa clareza nunca atingida antes.

Carlos Drummond de Andrade propôs a fórmula que sugere uma porta de iluminação equivalente, embora radicalmente diversa. Um dia, enquanto o poeta palmilhava uma estrada pedregosa de Minas, “a máquina do mundo” se abriu e se ofereceu para ele, com uma promessa de descortinar nada menos que “essa ciência/sublime e formidável, mas hermética,  essa total explicação da vida, /esse nexo primeiro e singular”. Aquela “máquina do mundo” prometia iluminar muito mais. Dentro dela se esconderia “o que pensado foi e logo atinge/distância superior ao pensamento”.

A esses mundos impossíveis que a Arte cria, mundos não científicos (embora nunca anticientíficos), a universidade confere visto de residência permanente. A partir daí, podemos matutar sobre a universidade e seu tempo futuro num plano paradoxal – posto que não é plano – situado além da “brilhante névoa prateada”, além do “aleph” e além do limiar entreaberto da “máquina do mundo”.

O exercício pleiteia imaginação livre e perguntas desconcertantes, com apetite crítico. Nesse deslocamento, precisamos de algo que, mais do que observar o ceticismo científico, ponha em xeque os postulados do ceticismo científico. Eu diria que, sem a possibilidade de nos arriscarmos para além do espelho, a universidade pode ser produtiva e até mesmo “de ponta”, mas não terá graça nenhuma, pois dentro dela não teria lugar aquilo que de imponderável existe para definir a humanidade – e as Humanidades.

É certo que, sem as métricas da ciência – sem seu método, seus matemas, seus discursos, seus critérios objetivos e seus padrões de certificação –, não há arquitetura de ensino superior, de pesquisa acadêmica ou de universidade. Não obstante, será que as métricas da ciência nos bastam? Creio que não. O dado incômodo é que, se quisermos divisar a massa de referenciais científicos pelo lado de fora, teremos não que nos expor aos nossos próprios olhos diante do espelho: teremos que nos desmaterializar do lado de cá e passar a existir do lado de lá da lâmina que nos reflete.

Por aí podemos então contemplar a fisionomia da ciência quando vista a partir do exterior da própria ciência. E, atenção, aqui o que é exterior à ciência não se confunde com religião ou política. É justamente esse exterior e não outro que não pode faltar à cartografia da universidade – uma cartografia paradoxal, além de complexa. Na universidade, postulo eu, a ciência deve ser pensada como problema, ou como questão, jamais como a matriz do pensar e muito menos como solução. Na universidade, a ciência não teria como fechar sobre si mesma o seu próprio círculo, ainda que se presuma que esse círculo contenha as vias de superação de seu próprio perímetro, que tende a expandir-se em saltos de dentro para fora. A universidade – pois não há outra instituição capaz de tamanho arrojo intelectual – olha para a ciência como o sujeito olha para o que lhe é inteiramente outro. A ciência não pauta a universidade plenamente, mas apenas a instrui por meio de interpelações conflituosas. Ou é assim ou não haverá a humanidade – ou as Humanidades – na universidade.

Se a universidade não é mais acessível numa sociedade desumana como a brasileira, ela é uma universidade desumanizada e reprodutora de uma ordem de exclusão, ordem que trava o desenvolvimento humano.

Claro que isso demanda uma nova maneira de ensinar a Filosofia – que vá além do ensino da História da Filosofia, como diz Renato Janine Ribeiro, para quem “a filosofia consiste em filosofar”, como ele me cochichou durante uma das mesas do dia 10. Ou a universidade “filosofa” ou se reduz, na melhor das hipóteses, a uma usina de patentes. Patentes são úteis, mas é a Filosofia que pensa sobre a natureza da utilidade.

Além de Filosofia, convoquemos a Arte. Nesse caso, falamos de uma centelha de arte antimercado, anti-indústria e antiengajamento. A arte que importa à universidade seria aquela que se realiza no instante da aparição de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja (Benjamin), no grânulo infinitesimal de tempo em que essa fagulha ainda não é matematizável. Arte como exceção à regra da cultura. Arte como desestabilização num flash, trepidação do léxico, impedância imperceptível, entropia vital. Arte como o deslizamento criativo do significante no momento em que se desprende do significado anterior e ainda não encontrou seu novo significado.

Que voo do espírito lograria criticar a ciência, sem pretender reduzi-la a dogmas? A Filosofia, por certo – e a Arte, também. É nesse sentido que, hoje, muito mais do que em 1934, não é mais pensável a universidade longe da Filosofia e da Arte. Ciência é conhecimento em experiência, mas nem toda experiência de conhecimento é Ciência. Ou sabemos disso – e disso só se sabe quando disso se desconfia – ou não teremos o expediente de opor resistência ao imperativo da Técnica que nos ordena seguir a Ciência como se ela fosse Religião, ao mesmo tempo em que nos proíbe de chamar de Religião a Ciência. Também por isso, sigamos para além do espelho.

As chaves tão em voga quanto a Excelência ou a Avaliação não deveriam se reduzir às métricas científicas. Nem quando discutimos a missão da instituição da universidade, nem quando discutimos decisões de ordem prática, política ou estratégica dessa mesma instituição. Sobre as questões de ordem prática, quero dar dois exemplos.

Consideremos, no primeiro exemplo, o aparente impasse que se instaura entre duas diretrizes possíveis: de uma parte, a necessidade de ampliar a oferta de vagas em boas universidades para um número maior de jovens brasileiros e, de outra parte, a busca de uma universidade de pesquisa avançada, com altos padrões de desempenho científico. Normalmente, o que se diz é que a escolha estratégica não pode se dar simultaneamente pelas duas diretrizes. Ou bem se elege uma, ou bem se elege a outra. Será assim mesmo?

De um lado, sabemos que o Brasil, para se desenvolver e se civilizar, precisa ter mais gente com formação universitária, como quem abre as portas de acesso à cultura e ao conhecimento. Se a universidade não é mais acessível numa sociedade desumana como a brasileira, ela é uma universidade desumanizada e reprodutora de uma ordem de exclusão, ordem que trava o desenvolvimento humano. Mesmo assim, há quem diga que a universidade dita “de massa” não se conciliaria com o projeto de uma universidade dita “de ponta”, mais ou menos como antigamente se dizia que partido “de vanguarda” não era partido “de massa”. Se o projeto é ter qualidade “científica”, deve-se desistir de ampliar a população universitária e nos contentar com uma instituição “de elite”.

Seria então essa a forma de equacionar o dilema? Seria uma questão de “A” ou “B”? Ou será que há outros encaminhamentos? Ou haveria aí um falso dilema? Será que justamente no reforço do caráter inclusivo da universidade numa sociedade desigual não pode se encontrar a trilha na direção da excelência de longo prazo? Pensemos a respeito – pensemos do lado de lá do espelho. Núcleos “de ponta”, dedicados à pesquisa que desbrava fronteiras da ciência, não poderiam conviver, dentro da instituição universitária, sobretudo num país como o Brasil, com a meta de incluir mais gente e mais gente? Só atravessando o espelho para descobrir.

Partamos agora para o segundo exemplo. Trata-se de um segundo dilema, que já comparece aos nossos debates e se tornará um tópico ainda mais rumoroso. Esse segundo dilema tem a ver com os modos de financiamento do ensino superior no Brasil. Não tenhamos dúvidas: a agenda de tornar pagos os cursos de graduação nas nossas escolas públicas vai se intensificar. A imagem pública da nossa universidade pública se desgastou demais e a gritaria para que sejam instituídas cobranças de mensalidades tem a ver com isso. A gritaria se reveste de uma suposta racionalidade, mas ela carrega, mais do que racionalidade, um rasgo de ressentimento.

Se você não acredita, lembre-se de que, há pouco tempo, uma operação desastrada – ou mesmo maligna – da Polícia Federal contra dirigentes de universidades públicas adotou o nome-senha de “Torre de Marfim”. Isso mesmo: a Polícia Federal do nosso país parece acreditar que a universidade pública brasileira se assemelha a uma “torre de marfim”, uma reserva intocável de privilégios e confortos desmedidos. No bojo dessa deterioração de imagem pública, entende-se como um “privilégio” e, portanto, como um não direito, condição de que os estudantes frequentem os cursos de graduação nas instituições públicas de ensino superior sem ter que pagar. Temos um problema nesse ponto. É evidente que temos um problema aí.

Agora vejamos. Enquanto recrudesce a sanha para que se institua a cobrança de mensalidades nas faculdades públicas do Brasil, nos Estados Unidos nota-se um movimento inverso. No MIT, Hashim Sarkis, dean da School of Architecture and Planning (onde está o curso de arquitetura e, entre outros órgãos, o Media Lab), vem falando de um plano para diminuir ou mesmo extinguir a cobrança de mensalidades e anuidades. Harvard, por sua vez, oferece cada vez mais cursos a distância gratuitos. Outro sinal interessante vem da Universidade de Nova York (NYU). Agora mesmo, em agosto, a NYU surpreendeu seus 443 alunos de medicina ao anunciar o fim das cobranças de pagamentos, o que representará uma economia de US$ 55 mil por ano a cada um deles. A medida não cobre alojamento e outras despesas, que totalizam em média US$ 27 mil anuais, mas dá mais um passo na direção da gratuidade do ensino.

Como interpretar esses sinais que vêm de fora, quando debatemos aqui a Avaliação e a Excelência na USP – e no futuro da USP? Parto da hipótese de que existe, nessa inflexão da universidade americana, um impulso de aspecto solidário, mas não creio que isso explique tudo. A questão é antes de racionalidade que de fraternidade. Basta ponderarmos. Nenhuma universidade digna desse nome se sustenta com a cobrança de mensalidades. Mesmo as instituições que cobram caro de seus alunos, se são verdadeiramente instituições que pesquisam e que desenvolvem conhecimento, precisam de recursos vultosos além dessa receita. Assim é que, de uma forma ou de outra, por um caminho ou por outro, a sociedade não tem como fugir da necessidade de bancar a pesquisa e também a formação de novos quadros qualificados para o mercado de trabalho.

A questão, portanto, não é se se deve adotar sistemas para ajudar os alunos a custearem seus estudos. A questão é como fazer isso.

As fórmulas socialmente consagradas para essa ajuda aos alunos do ensino superior são conhecidas. Podem-se oferecer financiamentos de longuíssimo prazo (aí, o custo para a sociedade aparece no prazo alongado de retorno do dinheiro público investido), como se vê comumente nos Estados Unidos e no Fies, no caso brasileiro. Outra alternativa é manejar políticas de compensação tributária, como acontece com o ProUni, um programa em que, pelo disciplinamento da renúncia fiscal, estabelecendo contrapartidas específicas, o Estado banca o financiamento dos cursos de graduação de milhões de estudantes. Podem-se ainda oferecer cursos gratuitos, simplesmente. De uma maneira ou de outra, porém, recursos públicos sempre afluem para apoiar a formação de novas gerações de profissionais qualificados.

Qual o caminho mais racional para organizar esse financiamento necessário? Que tipos de variáveis devem se levar em conta numa decisão dessa ordem? Mais do que uma medida de justiça social (dimensão que não pode ser esquecida), a melhor solução para o modo de financiamento do ensino superior passa por encontrar a maneira mais simples e mais eficiente – com menos custos administrativos – com o fim de se atingir o melhor objetivo, qual seja, entregar à sociedade profissionais bem formados, em prazos razoáveis, de acordo com as necessidades do País. A sociedade não tem como evitar de subsidiar, direta ou indiretamente, o ensino superior dos seus jovens. Isto posto, a gratuidade pode ser uma solução, antes de tudo, mais prática – que nada tem de privilégio ou de “torre de marfim”.

Note-se bem: a universidade gratuita não é mais cara que uma universidade em que o aluno conta com um financiamento de longuíssimo prazo, ou que uma outra financiada na base da renúncia fiscal. Em todas elas o investimento social (bancado pelo dinheiro público) seguirá existindo. Só o que muda é a maneira de se equacionar o investimento público. É aí que, talvez, a gratuidade seja a solução mais racional, o que poderia explicar a iniciativa recente das universidades americanas.

Não é só. A solução para o dilema do financiamento precisa levar em conta o caráter público das universidades públicas – tópico que, no meu modo de ver, afirma-se como prioritário na tomada de decisão. A maneira como se estrutura o ensino público na universidade pública constitui uma prática que tem, em si mesma, função formativa, não apenas para os alunos mas para toda a comunidade no entorno. A gratuidade, contrabalançada por sistemas regulares de prestação de contas e de transparência, enfatiza o caráter público da universidade pública e fortalece a percepção de que o ensino é, sim, um direito. É sempre um direito que corresponde às necessidades que aquela sociedade tem de pôr e repor profissionais em sua economia – e de se desenvolver e desenvolver as pessoas.

Ora, isso só se pode ver e entender se não nos acomodamos às planilhas de contabilidade burocráticas, desconectadas dos sentidos sociais e humanos. É preciso, tanto para analisar os detalhes da vida universitária, como para analisar o seu conjunto, um olhar que não se acomode à razão técnica. Mesmo quando lidamos com questões comezinhas como aumentar o número de vagas, como financiá-las ou como sustentar pesquisas avançadas, as métricas aparentemente impessoais – apenas aparentemente impessoais – não nos proporcionam a visão crítica. Os reflexos do espelho são insuficientes. É preciso duvidar do espelho.

Tudo isso me leva a dizer, enfim, que a universidade mora além da ciência. Há uma poética na universidade, e eu só não gostaria que não perdêssemos a oportunidade de encontrá-la, de ultrapassar o jogo de espelhos pelo qual ela se furta ao nosso olhar.

Para terminar, lembro que o poeta mineiro, nas estrofes finais, recusou o convite que lhe foi insinuado pela “máquina do mundo”. Sua recusa foi um acerto, penso eu, pois representou uma insubordinação à técnica encerrada no capitalismo extrativista. Lembro ainda que, no Aleph de Borges, a fissura que mostra o mistério, logo se esquiva. E é melhor assim, mas aí não me cabe discutir por quê. Quanto a Alice, tudo aquilo que ela encontra além da “brilhante névoa prateada” se fabula como um brinquedo absurdo, algo que nem rima nem é solução.

E tudo bem. Nesta hora em que gastamos nosso tempo pensando sobre a universidade, um pouco de arte e até mesmo de absurdo nos devolve um pouco de razão. O que é uma estratégia de país sem imaginação desregrada? E de que serve uma universidade que não se rebela contra o discurso da ciência, principalmente naquilo que, nesse discurso, é religião sem mistério?

 

 


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