Dantas Mota e o Velho Chico

Vagner Camilo – FFLCH

 08/07/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 11/07/2016 as 20:16
Vagner Camilo é professor de Literatura da FFLCH-USP - Foto: Marcos Santos
Vagner Camilo é professor de Literatura da FFLCH-USP – Foto: Marcos Santos

 

Embora hoje esquecido, Dantas Mota (1913-1974) teve em seu tempo uma acolhida favorável por parte de nomes respeitáveis do Modernismo, como Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Não custa lembrar que este último foi também o organizador da edição das poesias completas do poeta de Aiuruoca, intitulada Elegias do País das Gerais: Poesia Completa e publicada em 1961/1988 pela José Olympio, em convênio com o INL/Fundação Nacional Pró-Memória, correspondendo ao volume 6 da Coleção Resgate

Sob esse título geral, mais dois livros foram incluídos – Planície dos Mortos (1936-1944) e Anjo de Capote (1946-1952) – antes das Elegias do País das Gerais (1943-1958) propriamente ditas, além de outros poemas, inéditos e esparsos datados de até 1973.

Há no livro uma nota explicativa em que se ressalta o fato de se ter incluído, numa edição supostamente “completa”, alguns poemas que o próprio Dantas Mota pretendia excluir de uma nova edição de sua obra, embora duvidando que esta pudesse ocorrer um dia…

O editor teve o cuidado de assinalar com asterisco os poemas e versos que o autor desejava suprimir, além de publicar separadamente as duas “Epístolas de Tiradentes” que, segundo ele, não podem ser consideradas poemas – afirmação discutível, aliás.

Em carta endereçada a João Condé e originalmente publicada em O Cruzeiro, de 30 de junho de 1956, portanto, no período em que o livro estava ainda sendo gestado, Dantas Mota explica a gênese de seus poemas, remetendo ao contexto de transformações socioeconômicas e ambientais da região do São Francisco; à interlocução com a poesia drummondiana, de que se apropria intertextualmente em mais de uma passagem; à dicção bíblica e, de modo mais específico, à adoção de um estilo inspirado no apóstolo de quem também empresta o gênero epistolar.

São Paulo, que o poeta define como “um artista, torturado, inquieto e fecundo”, e um “revolucionário”, tem despertado interesse até o presente, inclusive de pensadores laicos, como Alain Badiou, Slavoj Žižek e Giorgio Agamben.

Embora hoje esquecido, Dantas Mota (1913-1974) teve em seu tempo uma acolhida favorável por parte de nomes respeitáveis do Modernismo, como Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade

É claro que evocar esses representantes da “nova esquerda”, a propósito da concepção progressista e emancipadora da teologia (por assim dizer) política paulina, como referência para o próprio ideal de militância do poeta de Aiuruoca, não implica ignorar as contradições de sua trajetória político-ideológica, marcada pela adesão à Ação Integralista, justificada por Drummond como um “pecadilho” que assolou muito da juventude ciosa de uma intervenção mais urgente na realidade social e política do tempo.

Tais contradições político-ideológicas talvez expliquem, em parte, o esquecimento a que o poeta foi relegado, como já ocorreu em outros momentos de nossa história literária. Tendo seu nome atrelado à sempre execrada “geração de 45”, Dantas Mota consagrou seus versos a um subgênero que voltou a ser tão explorado por ela a ponto de chegar à total banalização, como notou certa vez José Guilherme Merquior.

É certo que, por essa época, grandes nomes advindos do Modernismo e igualmente afinados com certa guinada classicizante da lírica moderna (de todo modo diversa da referida geração) vieram a dar contribuições valiosas nesse subgênero poético, bastando lembrar o próprio Drummond da famosa “Elegia” recolhida em Fazendeiro do Ar. É certo que esse alto grau de realização não encontra, de fato, correspondência equiparável entre os poetas de 45…

Creio, todavia, que as Elegias do País das Gerais sobressaem da mediania de sua geração, seja pelo nível mais elevado de realização dessa modalidade poética e de experimentação estilístico-formal, seja pela adequação das convenções gerais da elegia pastoral a uma realidade sócio-histórica muito específica.

Neste último caso, a atualização do (sub)gênero poético por meio do enraizamento em um contexto histórico-geográfico particular, explorando conflitos específicos dessa realidade, faz Dantas Mota levar adiante o projeto modernista de “redescoberta” do Brasil “profundo” e denúncia de suas mazelas.

Ele assim procede em relação à região do rio e do vale de São Francisco, justamente na década em que se assiste às transformações decorrentes da criação da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHSF) ainda durante o Estado Novo, em 1945, seguida das obras, iniciadas em 1949, da construção da usina de Paulo Afonso, cujo sistema foi inaugurado em 1954.

As consequências desse processo de modernização – sempre conservadora ou por alto, em se tratando de Brasil – para as populações locais ou ribeirinhas constituem a matéria mesma de que se alimentam as Elegias.

A perspectiva adotada pelo poeta não pode ser simploriamente traduzida, com base no lamento lutuoso que essa modalidade poética implica, em nostalgia dos modos de sociabilidade tradicionais afetados pela modernização devastadora do São Francisco, historicamente concebido como o rio da “integração nacional”, alvo de iniciativa pioneira de planejamento regional.

Para além da nostalgia, há aí uma reflexão mais funda que marca a apropriação e a referida atualização contextual das convenções da elegia pastoral promovidas por Dantas Mota, que inclusive merecem ser examinadas em confronto com outras apropriações modernistas desse subgênero poético tradicional, tal como proponho em um estudo mais amplo sobre a retomada da poesia elegíaca nos anos 1940 e 1950 no Brasil.

As Elegias do País das Gerais sobressaem da mediania de sua geração, seja pelo nível mais elevado de realização dessa modalidade poética e de experimentação estilístico-formal, seja pela adequação das convenções gerais da elegia pastoral a uma realidade sócio-histórica muito específica

De igual modo, interessa examinar o alcance da reflexão proposta por Dantas Mota contrastada com a sociologia nesse seu momento de especialização ou delimitação, acompanhado pelas disputas dos campos sociológico e literário.

É o caso do projeto coletivo liderado por Donald Pierson na região, com apoio nacional e internacional da Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) e do Institute of Social Anthropology/Smithsonian Institution (ISA/SI) no primeiro projeto de pesquisa empírica[1].

Em suma, vale a pena a releitura do livro de Dantas Mota ponderando-se sobre o alcance da memória e da vivência do sujeito lírico (por meio da incorporação da voz da alteridade e do próprio rio!) no seu esforço de se achegar ao universo das populações do Velho Chico, em confronto com os resultados dessa etapa de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, quando Pierson e seu grupo incorporam, ao papel do especialista sociólogo, o do agente de mudança social, com a experiência in loco.

 

 

[1] O referido estudo diz respeito ao projeto de Produtividade em Pesquisa, que venho desenvolvendo com apoio do CNPq/FFLCH-USP, intitulado A Elegia na Lírica Brasileira dos Anos 1940-1950. Quanto ao projeto de Pierson e a institucionalização das Ciências Sociais no País, ver Marcos Chor Maio, Nemuel da Silva Oliveira, Thiago da Costa Lopes. Donald Pierson e o Projeto do Vale do Rio São Francisco:Cientistas Sociais em Ação na Era do Desenvolvimento. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 56, no. 2, 2013, pp. 245-284.

 


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