Em sua 15ª edição, o Prêmio USP de Direitos Humanos foi entregue nesta sexta-feira, dia 29, ao antropólogo Kabengele Munanga, professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que tem sua trajetória voltada para as questões raciais. A cerimônia de entrega da honraria foi realizada às 10 horas na Sala do Conselho Universitário da USP, na Cidade Universitária, em São Paulo.
Kabengele Munanga foi um dos protagonistas do debate nacional em defesa das cotas e de políticas de ações afirmativas – ou seja, ações que visam a oferecer aos grupos discriminados e excluídos um tratamento para compensar as desvantagens sofridas por causa do racismo ou outra forma discriminatória.
Em sua área de pesquisa, intitulada Relações Raciais, estudou temáticas ligadas à questão da cultura negra no Brasil, o racismo brasileiro, a problemática da construção da identidade negra e a inclusão do negro na sociedade brasileira, segundo ele, “um universo racista, um racismo brasileiro não confessado, mas que existe e faz vítimas”.
“O problema fundamental não está na raça, que é uma classificação pseudocientífica rejeitada pelos próprios cientistas da área biológica. O nó do problema está no racismo que hierarquiza, desumaniza e justifica a discriminação existente”, escreveu Kabengele Munanga em artigo na Revista USP (edição 2005/2006). E continua: “As propostas de combate ao racismo não estão mais no abandono ou na erradicação da raça, que é apenas um conceito e não uma realidade, nem no uso dos léxicos cômodos como os de ‘etnia’, de ‘identidade’ ou de ‘diversidade cultural’, pois o racismo é uma ideologia capaz de parasitar em todos os conceitos”.
Ainda no artigo, Munanga diz que alguns questionam se as políticas de reconhecimento das identidades “raciais”, em especial da identidade negra, não ameaçariam a unidade ou a identidade nacional, por um lado, e se não reforçariam a exaltação da consciência racial, por outro. Ou seja, se não teriam um efeito “bumerangue”, criando conflitos raciais que, segundo eles, não existem na sociedade brasileira. É dentro dessa preocupação, entre outras, que as críticas foram dirigidas contra as políticas de cotas rotuladas como raciais.
“Eu defendi cotas. Era um dos poucos na USP que defendiam cotas”, afirma Munanga, em entrevista ao Jornal da USP. “Entendia que era absolutamente necessário e que não havia outro caminho para que os estudantes negros pudessem ingressar na Universidade.” Segundo ele, o sistema de cotas já tinha dado resultado em outros países, como na Índia e nos Estados Unidos, e era um caminho possível para a inclusão da população negra no ensino superior. “Infelizmente não consegui levar adiante a discussão. A USP se trancou em defesa de mérito, qualidade e excelência, e só há pouco tempo a Universidade adotou a política de cotas.”
Em um país em que a população negra, os chamados afrodescendentes de modo geral, corresponde, de acordo com o último censo, a quase 52% da população brasileira, Munanga pergunta: quantos estudantes negros estão na Universidade de São Paulo? Quantos professores negros há em São Paulo? E ele mesmo responde: é muito pouco, é quase invisível. “Em um país que quer mudar, quer se democratizar, que luta contra o racismo, contra as desigualdades raciais, além de outras desigualdades como a socioeconômica, o sistema de cotas era indispensável.”
Segundo Munanga, não há democracia racial no Brasil. “Desde os anos 60, grandes intelectuais como Florestan Fernandes, Octavio Ianni e até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se dedicaram à questão, mostrando que a democracia racial é um mito, não existe no Brasil”, conta. “Há discriminação racial, que cria desigualdades e barreiras para a evolução e para a mobilidade do negro na sociedade brasileira.” A solução, segundo ele, além de denúncias, é promover políticas públicas de inclusão.
Sua trajetória
Kabengele Munanga nasceu em 1942, em uma aldeia de Bakwa Kalonji, na República Democrática do Congo. Em 1964, ingressou no curso de Ciências Sociais da Universidade Oficial do Congo, em Lubumbashi, inscrevendo-se dois anos depois no recém-criado curso de Antropologia (era o único aluno do curso). Em 1969, recebeu uma bolsa de estudos do governo belga e começou sua pós-graduação na Universidade Católica de Louvain (Bélgica). Nesse tempo, foi pesquisador no Museu Real da África Central em Tervuren (Bruxelas), onde se especializou em estudo das artes africanas tradicionais.
No entanto, por questões relacionadas à ditadura militar instalada em seu país, não conseguiu concluir sua tese. Chegou ao Brasil em 1975, a convite do professor Fernando Mourão, do Departamento de Sociologia da FFLCH e fundador do Centro de Estudos Africanos da USP, onde Munanga terminou seu doutorado. Trabalhou dois anos como professor visitante na Universidade no Rio Grande do Norte e ingressou na USP em 1980, ainda no antigo Departamento de Ciências Sociais, onde ficou até 2012, quando se aposentou como professor titular.
Além da carreira acadêmica, Munanga desempenhou cargos como os de diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), entre 1983 e 1989, vice-diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC), entre 2002 e 2006, e diretor do Centro de Estudos Africanos, de 2006 a 2010 – os três da USP. É autor de mais de 150 publicações, entre capítulos de livros, artigos científicos e livros, entre eles Origens Africanas do Brasil Contemporâneo – Histórias, Línguas, Culturas e Civilizações (Global Editora) e Estratégias e Poéticas de Combate à Discriminação Racial (Edusp).
Para Munanga, o fato de receber o Prêmio USP de Direitos Humanos encoraja as pessoas a lutarem pela transformação da sociedade, e significa que sua luta pela inclusão dos negros foi reconhecida.
O Prêmio USP de Direitos Humanos foi criado pela Comissão de Direitos Humanos da USP para divulgar e coroar ações de pessoas e grupos que fazem do mundo um lugar mais justo e melhor para os cidadãos. Através dele, a Universidade identifica e presta homenagem a pessoas e instituições que, por suas atividades exemplares, tenham contribuído significativamente para a difusão, disseminação e divulgação dos direitos humanos no Brasil.