Uma ressalva a Agatha Christie

Jean P. Chauvin é responsável pela disciplina O Romance Policial de Agatha Christie, na Escola de Comunicações e Artes da USP

 07/05/2018 - Publicado há 6 anos

Foto: Marcos Santos / USP Imagens

 

 

 

 

 

 

 

Todo romancista em algum momento recorre a expedientes para relembrar (ao leitor) o nome das personagens que criou. Esse procedimento se revela particularmente útil quando a quantidade das figuras é maior que a habitual.

Chamemos a esse recurso de recapitulação.

A intervalos mais ou menos regulares, o escritor leva o investigador (ou seu auxiliar) a fazer uma lista de pessoas, ações e lugares, como forma de recordar e melhor organizar as suas anotações. Essa providência tem como alvo primário o leitor, que fixará mais facilmente o nome das criaturas envolvidas na trama.

A questão é que ao recapitular os elementos desse modo, o escritor corre o risco de tornar a leitura cansativa e, mesmo, arrastada. Na tentativa de facilitar a vida do leitor, a narrativa pode ser comprometida em sua fluidez e progressão. Isso porque as constantes retomadas de dados (especialmente aqueles já registrados por outras personagens) provocam a sensação de que o didatismo nem sempre favorece a qualidade literária.

Esse senão é particularmente perceptível em Nêmesis (1971), um dos últimos trabalhos de Agatha Christie. Protagonizado por Miss Jane Marple, o romance começa por retomar sua curiosa parceria com o Sr. Rafiel, de Mistério no Caribe (1964). Triste constatação: os quatro capítulos iniciais de Nêmesis envolvem personagens do romance anterior, com direito à repetição de opiniões por parte de Miss Marple e dos advogados do Sr. Rafiel.

Antes de prosseguir, uma importante distinção. Poderíamos mencionar dois métodos de recapitulação em Nêmesis. 1. Externo, ou intertextual, em que o enredo de um romance dialoga (ou serve de estofo) com o de outro; 2. Interno, ou endógeno, em que determinados pensamentos ou diálogos são reproduzidos no interior do próprio romance.

Exemplo da primeira modalidade de recapitulação, em que Nêmesis evoca Mistério no Caribe:

“Lã cor-de-rosa. O mar azul. O mar do Caribe. Uma praia arenosa. Ensolarada. Ela tricotando e… mas claro, Sr. Rafiel. Aquela viagem que fizeram às Antilhas. A Ilha de St. Honoré. E lembrou-se de Joana, a mulher de Raymond, seu sobrinho, aconselhando-lhe:

– Não se meta mais em crimes, tia Jane. Isso não lhe faz bem” (N, p. 12).[1]

“Sentada em sua mesinha de canto, Miss Marple olhava em torno de maneira interessada. A sala de jantar era um salão aberto de três lados para o ar morno e perfumado das Índias Ocidentais. Em cada mesa, pequenas lâmpadas suavemente coloridas. A maioria das mulheres estava com vestidos longos, e leves, estampados de algodão, que deixavam à mostra braços e ombros bronzeados. A própria Miss Marple fora obrigada pela mulher de seu sobrinho, Joan, da maneira mais gentil possível, a aceitar “um pequeno cheque” (MC, p. 15).

Após aproximar o ato de tricotar de uma situação homóloga, em outro cenário, Miss Marple concentra-se na personalidade do falecido amigo:

“Miss Marple continuou pensando, as agulhas de tricô trabalhando sem parar, mas com as ideias, lembrando-se do falecido sr. Rafiel, de tudo o que podia a seu respeito. De fato não era fácil esquecê-lo. Seria capaz de reconstituir de memória, sem esforço, a sua aparência” (N, p. 13).

Essas alusões ao Caribe e ao crime que ela e o Sr. Rafiel impediram, naquela ocasião, não se limitam às primeiras páginas; estão semeadas ao longo do romance, o que nos leva a perguntar se o propósito de Agatha Christie seria dar continuidade à narrativa anterior, fosse em razão da personalidade marcante da sua personagem, fosse para atender a uma demanda da editora, em razão do índice de vendas de Mistério no Caribe.

As constantes referências às figuras do romance anterior, combinadas às repetições de falas proferidas pelas personagens do próprio Nêmesis, tornam a obra um tanto cansativa. O leitor fica com a sensação de que o motivo da investigação corrente (a morte de Verity Hunt) é empurrado para as páginas finais, sem justificativa plausível.

Dito de outro modo, é como se Nêmesis pudesse ser reduzido à metade das páginas que ocupa. A maior economia narrativa seria benéfica para a objetividade e condução do enredo, o que redundaria em melhor acabamento da obra.

Para mencionar apenas alguns exemplos de recapitulação da segunda espécie (endógena), recorro às impressões que as pessoas entrevistadas por Miss Jane Marple tinham de Michael Rafiel, filho do Sr. Rafiel (personagem central do romance anterior, Mistério no Caribe):

– Michael Rafiel?

– Isso mesmo! Correu boato que o pai era tão rico que conseguiu tirar ele da cadeia” (N, p. 102).

“Para explicar de maneira bem simples, tratava-se de um rapaz que desde a adolescência só tinha dado desgostos. Um delinquente juvenil, um pequeno malfeitor, um elemento pernicioso (N, p. 127).

Ao que parece, a Verity tinha travado amizade com um rapaz indesejável… aliás, mais que indesejável… depois se descobriu até que ponto era perigoso… ele já possuía antecedentes criminosos. Veio nos visitar uma vez quando passou por aqui. Conhecíamos muito bem o pai dele.”  (N, p. 164)

As descrições são idênticas àquelas encontradas no Colégio de Fallowfield, sob a direção de Elizabeth Temple, onde Verity Hunt estudara. Em diversas ocasiões, personagens diferentes defendem a hipótese de que certos traços comportamentais seriam transmitidos aos filhos por “herança genética” (N, p. 195).

“Tinha, portanto, ficha de criminoso. O pai, eu conhecia, embora não muito bem, e acho que fez tudo o que pôde (…) Podia ter sido honesto, se quisesse e se desse ao trabalho de sê-lo. Mas era, por natureza, um delinquente” (N, p. 195).

Na página 135, Miss Marple recapitula como e por que se envolveu com a investigação:

“– Agora é melhor que eu lhe conte rapidamente como entrei nessa história – disse Miss Marple. – [O] sr. Rafiel, conforme o senhor sabe, morreu. Os advogados me pediram para ir lá falar com eles e me comunicaram a proposta. Me entregaram uma carta dele que não explicava nada” (N, p. 135).

Além de não colaborarem no desenvolvimento da trama, as constantes remissões aos mesmos elementos do passado (o cadáver de Verity foi “encontrado esmigalhado num valo”) permitem afirmar que o romance não pode ser colocado ao lado dos melhores títulos publicados por Agatha Christie.

Evidentemente, nem tudo são repetições.

No cômputo geral, se a condução de Nêmesis por vezes soa algo burocrática, o desfecho do romance surpreende. Miss Jane Marple continua com o senso aguçado, ao analisar as pessoas de seu convívio, o que lhe permite estabelecer sugestivas comparações: “– Como as peônias são bonitas – disse Miss Marple, contemplando as flores a seu lado. – Essas pontas tão longas que têm… tão orgulhosas e no entanto tão maravilhosamente frágeis. Elizabeth Temple virou a cabeça para ela” (N, p. 73).

…Simular inocência: “– Ah, meu Deus – exclamou Miss Marple, – não… não… não me recordo do nome dele, mas me lembro de ter ouvido falar que havia um filho… que só tinha dado desgostos ao pai” (N, p. 164) e obter informações que permitirão a ela desvendar o mistério relacionado às três irmãs. Ou seriam “– As três parcas?” (N, p. 135).

A despeito do ritmo arrastado e das recapitulações externas e internas, há que se reconhecer os retratos bem-acabados do romance, particularmente a autoritária sra. Risaley Porter, o anarquista Emlyn Price, o sisudo Professor Wanstead e o cauteloso Arcediago Bragabon. Isso sem falar na personalidade contrastiva e instável das irmãs Antheo, Clotilde e Glynna.

O código, afinal, “é Nêmesis”, já havia dito o sr. Rafiel em Mistério no Caribe.

 

Referências

CHRISTIE, Agatha. Nêmesis. Tradução: Milton Persson. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

_____. Mistério no Caribe. 5a ed. Tradução: Carmen Ballot. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

[1]     Os romances serão identificados por MC (Mistério no Caribe) e N (Nêmesis), nas citações daqui em diante.

 

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