Ouça no link acima entrevista com o cineasta Pedro Serrano, autor do documentário Adoniran – Meu nome é João Rubinato, sobre a vida e a obra do compositor paulista, que foi ao ar no dia 10 de abril de 2018 no programa Via Sampa, da Rádio USP, com apresentação de Miriam Ramos e produção de Heloisa Granito.
Falar de Adoniran Barbosa é pensar São Paulo, seu povo e suas transformações. Uma obra que transcende o universo sonoro, o ritmo e a melodia para se afirmar como crônica urbana, registro de uma época e de uma parte da cidade comumente deixada de lado. Junto de cada coro que entoa Saudosa Maloca e Trem das Onze em rodas de samba e karaokês, história e memória fazem algumas das mais potentes aparições dentro da tradição da música brasileira.
Sua atualidade se nota no lugar de honra que o documentário Adoniran – Meu nome é João Rubinato ocupa no festival É Tudo Verdade de 2018. O filme de Pedro Serrano, que já dirigiu um curta sobre o sambista com o titã Paulo Miklos como protagonista, abre a 23ª edição da mostra de documentários, que se realiza de 12 a 22 de abril, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Entender a gênese criativa do maior nome do samba paulista é conhecer o homem. Sétimo filho de imigrantes italianos, Adoniran nasceu em 6 de agosto de 1910 em Valinhos (SP). Foi batizado como João Rubinato. O pseudônimo viria muitos anos depois, unindo o prenome de um amigo com o sobrenome do sambista Luiz Barbosa. João achava que não tinha nome de artista.
De Valinhos, migrou com a família para Jundiaí em 1918 e depois para Santo André. Seguindo uma trajetória típica às suas origens, abandonou os estudos para se dedicar ao trabalho. Transformou-se em entregador de marmitas no Hotel Central de Jundiaí, varredor numa fábrica de tecidos, carregador de vagões da São Paulo Railways, tecelão, encanador, pintor e garçom. Aprendeu o ofício de metalúrgico e abandonou-o por problemas pulmonares. Foi ainda vendedor de ferragens, tecidos e meias.
Os interesses do jovem Rubinato, contudo, estavam em outras ondas. Com 22 anos, dá a cara a tapa no programa de calouros da rádio Cruzeiro do Sul, a primeira de muitas desclassificações motivadas pela voz anasalada e fora dos padrões de excelência da época de ouro. Mesmo assim, consegue um primeiro lugar no programa de Jorge Amaral interpretando Filosofia, de Noel Rosa, em 1933.
Se a voz não trouxe o reconhecimento desejado, as canções fariam justiça às pretensões artísticas de Adoniran. Um ano após compor seu primeiro samba, Minha Vida se Consome (com Pedrinho Romano e Verídico), de 1932, agarra o primeiro lugar num concurso carnavalesco da Prefeitura de São Paulo. A responsável é a marcha Dona Boa, parceria com o maestro J. Aimberê. É a partir daí que João Rubinato dá lugar a Adoniran Barbosa.
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Figura de talentos múltiplos, sua próxima aventura se daria como ator radiofônico. Em 1941, ingressa como comediante no programa Serões Domingueiros, onde conhece o produtor e escritor Osvaldo Moles. Os dois firmariam uma parceria puxada por mais de um quarto de século, tanto na composição de sambas quanto no rádio, proporcionando a Adoniran a base textual para desfilar dúzias de tipos que revelariam seu olhar aguçado para a realidade social.
Nos estúdios de rádio surgem Zé Cunversa, o malandro; Jean Rubinet, o galã francês; Moisés Rabinovic, o judeu; Richard Morris, o professor inglês; Pernafina, o chofer italiano; e o sambista Charutinho. É com este último que Adoniran brilha no programa Histórias das Malocas, que se estende na Record até 1965 e ganha também versão para circo e televisão. Cinco prêmios Roquete Pinto de melhor intérprete cômico do rádio paulista atestam o prestígio do radioator.
Essa vocação para atuação se arrisca também no cinema, e Adoniran aparece em filmes, como os da Vera Cruz. Integra O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, Esquina da Ilusão (1953), de Ruggero Jacobi, e Candinho (1954), de Abílio Pereira de Almeida. Duas décadas mais tarde surgiria também na primeira versão da novela Mulheres de Areia, da TV Tupi.
O sambista
Apesar de a carreira se espraiar entre rádio, cinema e televisão e as incursões como compositor datarem já dos anos 1930, é a produção musical realizada a partir da década de 1950 que imortaliza Adoniran. É de 1955 a gravação dos Demônios da Garoa de Saudosa Maloca, que garante o primeiro sucesso do conjunto. A partir daí, a descrição de cenas populares, com pessoas suburbanas e seus dramas, se juntaria à escrita característica do sambista, com seu português coloquial inspirado no frescor da fala do povo. É quando vêm à luz Joga a Chave, As Mariposas, Samba do Arnesto, Apaga o Fogo Mané, Iracema, No morro da Casa Verde e Tiro ao Álvaro, para citar as mais famosas.
“A música popular brasileira é a grande cronista do povo que não teve como registrar a sua história e o Adoniran é um cronista da realidade de São Paulo”, analisa o professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Ivan Vilela. “Ele está o tempo todo narrando questões cotidianas da cidade.”
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Vilela destaca, contudo, que compreender Adoniran apenas pelas palavras de suas canções é reduzir suas qualidades. “A coloquialidade das letras se enquadra na coloquialidade das melodias”, explica o professor. “As melodias são fáceis de cantar, parecem narrativas. É uma música a serviço da narrativa.”
A assinatura musical de Adoniran chegaria ao teatro em 1959, com Nóis Dois Não Usa Breque Tai, samba-tema de Eles Não Usam Black-Tie, a obra-prima política de Gianfrancesco Guarnieri. O arrasa-quarteirão, contudo, ainda estaria por vir.
Foi em 1964 que surgiu Trem das Onze, responsável por tomar de assalto as rádios e trazer para São Paulo o primeiro lugar do carnaval carioca no Prêmio do Quarto Centenário da cidade, na gravação dos Demônios da Garoa. As décadas seguintes tratariam de elevar a composição a hino da capital paulista, ocupando o topo de listas de canções mais representativas da metrópole.
É só sexagenário que Adoniran grava seu primeiro LP. Reunindo seus sucessos, a obra surge em 1974, com apresentação do crítico literário e professor da então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP Antonio Candido, que defende a escrita do sambista. O segundo álbum viria em 1975 e o derradeiro, com a participação de diversos intérpretes comemorando seus 70 anos, chegaria em 1980.
Dois anos depois, em 1982, Adoniran morre, em 23 de novembro. À época, já havia sido gravado por nomes de presença da MPB: Beth Carvalho, Clara Nunes, Djavan e Elis Regina apenas encabeçam a lista. Nas quase quatro décadas seguintes vieram outras gravações, coletâneas e a consagração de Adoniran como patrimônio da cidade de São Paulo.
Para Vilela, suas canções trazem uma mensagem que é tanto pessoal quanto social. “O Adoniran se coloca nas músicas como um cidadão pobre. Ele mora lá em Jaçanã, não em Higienópolis. A casa em que morava foi demolida. O tempo todo o discurso dele está virado para o lado dos pequenos. Ele era um homem simples e manteve a simplicidade mesmo nos momentos de sucesso.”
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