Livro expõe política indigenista e o malogrado projeto de aldeamento do século 19

Obra traça panorama da primeira política indigenista do Estado brasileiro, desenvolvida pelo governo imperial no século 19

 30/06/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 04/07/2016 as 19:43
Com a ajuda de frades capuchinhos italianos, o Império procurou enquadrar os índios geográfica e culturalmente, mas a resistência velada que estes opuseram redimensionou o empreendimento (imagem: Cacique Pahi Kaiowá, Aldeamento de Santo Inácio do Paranapanema. Franz Keller, 1865 - Foto: Carneiro, Newton / Iconografia Paranaense, Curitiba, Impressora Paranaense, 1950
Com a ajuda de frades capuchinhos italianos, o Império procurou enquadrar os índios geográfica e culturalmente, mas a resistência velada que estes opuseram redimensionou o empreendimento (imagem: Cacique Pahi Kaiowá, Aldeamento de Santo Inácio do Paranapanema. Franz Keller, 1865 – Foto: Carneiro, Newton / Iconografia Paranaense, Curitiba, Impressora Paranaense, 1950)

O século 19 foi palco da primeira política indigenista do Estado brasileiro. O fenômeno é o objeto do livro Terra de Índio: Imagens em Aldeamentos do Império, de Marta Amoroso, publicado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A obra resultou das pesquisas de doutorado e pós-doutorado de Marta – ambas apoiadas pela Fapesp e realizadas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). A obra traça um panorama da política indigenista do reinado de Dom Pedro II (1841-1889) e o malogrado projeto de aldeamento indígena criado pelo governo imperial e executado por frades da ordem dos Capuchinhos.

“Esta política de Estado, baseada no ‘Programa de Catequese e Civilização dos Índios’, e instituída por decreto do imperador Pedro II, consistia no aldeamento das populações indígenas. E atendia a dois objetivos principais: por um lado, integrar o índio, como trabalhador rural, à jovem nação brasileira; por outro, liberar terras, antes utilizadas pelos indígenas, para os imigrantes europeus, que começavam a chegar nas colônias do Sudeste do País”, diz a pesquisadora.

Pedro II tinha apenas 19 anos quando assinou, em 24 de junho de 1845, o decreto que criou os aldeamentos. Estes perduraram até o final do Segundo Reinado, em 1889. Aldeamentos foram criados em todas as províncias brasileiras. Para administrá-los e dirigi-los, o Império solicitou à Propaganda Fide, do Vaticano, precursora da atual Congregação para a Evangelização dos Povos, que enviasse ao Brasil frades italianos da Ordem Menor dos Capuchinhos. Cerca de cem missionários capuchinhos desembarcaram no País, logo enviados aos quatro cantos do Império, ao encontro das populações indígenas.

“Os capuchinhos não tinham frente aos índios um projeto de autonomia como o dos jesuítas, que atuaram nos primeiros séculos da colonização. Eram pragmáticos e burocráticos, a maioria deles de origem rural, mal falando o português. E foram contratados como funcionários do governo, com salário pago”, ressalta Marta. “Estavam envolvidos no programa de criação da nação brasileira, de construir um povo a partir da mistura. Era um programa de apagamento da identidade indígena, e os capuchinhos se empenharam ao máximo em levá-lo à prática.”

Documentação

Mapa Corográfico da Província do Paraná. João Henrique Elliott, 1857 - Foto: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Documentação Cartográfica [ARC 4-1-4]]
Mapa Corográfico da Província do Paraná. João Henrique Elliott, 1857 – Foto: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Documentação Cartográfica [ARC 4-1-4]
A maior parte da documentação utilizada por ela em seu livro veio de um arquivo dessa ordem religiosa, localizado no Rio de Janeiro. “Os capuchinhos deixaram relatórios e cartas absolutamente circunstanciados, com detalhes administrativos ultraminuciosos”, afirma a pesquisadora. “Além dos relatos dos viajantes do século 19, foram esses documentos religiosos, e ao mesmo tempo oficiais, que forneceram a base de dados para o meu trabalho.”

Inicialmente a pesquisadora fez um levantamento da cartografia dos aldeamentos do Império. Depois, fechou o foco da pesquisa no sistema de aldeamentos do Paraná, especialmente em seu núcleo central, São Pedro de Alcântara, localizado às margens do rio Tibagi, para o qual havia uma documentação muito substanciosa. “Esse aldeamento, próximo da cidade de Castro, reuniu cerca de 4 mil índios, de quatro etnias: os Kaingang, do tronco linguístico Macro-Jê, e os Kaiowá, Nhandeva e Mbyá, que são falantes da língua Guarani”, relata Marta. “Considerados agricultores dóceis, os Guarani-Kaiowá, que atualmente sofrem violências brutais devido a conflitos de terras, foram trazidos do Mato Grosso para o Paraná, com a perspectiva de que povoassem os aldeamentos do governo e pudessem produzir mantimentos para abastecer o exército brasileiro na chamada Guerra do Paraguai [1864 – 1870].”

Segundo a pesquisadora, foram feitas várias tentativas para tornar o aldeamento de São Pedro de Alcântara economicamente produtivo: mantimentos, café, tabaco etc. Mas todas elas fracassaram. Até que o empreendimento finalmente prosperou com a instalação de uma destilaria de aguardente. “Houve todo um esforço, muito bem documentado, dos capuchinhos na montagem dessa destilaria”, comenta a pesquisadora. “É incrível que uma das maiores calamidades vividas pelas populações indígenas, que é o alcoolismo, tenha sido oficialmente promovida.”

O “Programa de Catequese e Civilização dos Índios” inspirou-se em uma ideia de tutela das populações indígenas que remontava aos “Apontamentos para a Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil”, produzidos em 1823 por José Bonifácio de Andrada e Silva. E, antes deles, às diretrizes definidas pelo Marquês de Pombal após a expulsão dos jesuítas do Império Português, na segunda metade do século 18. O trabalho de Marta aponta que o modelo do indigenismo pombalino, retomado nos aldeamentos indígenas do Império, contrastava na sua concepção com o ideal de autonomia buscado pelas missões jesuíticas. Até por isso, os aldeamentos do Império não eram áreas de confinamento. Os índios não permaneciam reclusos em seu interior.

Aldeamento de São Pedro de Alcântara em 1859. Detalhe da gravura que ilustra o Mapa Corográfico da Província do Paraná, João Henrique Elliott, 1857 - Foto: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Documentação Cartográfica [ARC 4-1-4]
Aldeamento de São Pedro de Alcântara em 1859. Detalhe da gravura que ilustra o Mapa Corográfico da Província do Paraná, João Henrique Elliott, 1857 – Foto: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Documentação Cartográfica [ARC 4-1-4]

Colônias agrícolas

“Os aldeamentos eram concebidos como colônias agrícolas, em cujas sedes ficavam lotados os missionários e funcionários contratados e instaladas as unidades produtivas mais importantes. E essas sedes administravam aldeias indígenas localizadas relativamente perto”, diz a pesquisadora. “Apesar de os deslocamentos forçados serem previstos pela ideologia associada aos aldeamentos, na maioria dos casos, estes traslados de população de fato não ocorreram. Os frades tutelavam aldeias que já existiam e continuaram existindo”, acrescentou a pesquisadora.

A própria ideia da tutela parece ter sido encarada como uma solução provisória. Em carta enviada pelo Palácio Imperial ao presidente da Província de São Paulo em 1847, dois anos após a assinatura do decreto que criou os aldeamentos, assim foi exposto o princípio que os orientava: “Arrancar à vida errante a multidão de selvagens que vaga pelos nossos bosques para reuni-los em sociedade, inspirar-lhes o amor ao trabalho e proporcionar-lhes os cômodos da vida civil, até que possam apreciar as suas vantagens e viver de qualquer trabalho ou indústria”. Essa mesma correspondência ordenava ao presidente provincial que impedisse que o aldeamento acolhesse indígenas e descendentes já integrados à sociedade, “confundidos na massa geral da população”.

Um aspecto para o qual a pesquisadora chamou a atenção foi o fato de que, ao lado de cada aldeamento, o Império instalou também uma guarnição militar. “As Colônias Militares são a evidência de uma política de guerra nas fronteiras internas do Império, em contraponto à ‘brandura para com os índios’ da propaganda imperial”, disse.

O livro destaca as estratégias indígenas diante do “Programa de Catequese e Civilização dos Índios”, encenando uma resistência não declarada nos territórios então administrados pelo governo. De modo geral, a pesquisa destacou uma grande mobilidade dos grupos indígenas que permaneceram em suas aldeias, frequentando eventualmente os aldeamentos. Assim, a despeito do zelo gerencial dos capuchinhos, a política de aldeamento fracassou. As atividades produtivas não prosperaram, as verbas foram minguando, os equipamentos se degradaram e as estratégias indígenas triunfaram sobre a normatização burocrática.

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

Muitos aldeamentos do Império são agora terras indígenas. É o caso do Aldeamento São Jerônimo, atualmente Posto Indígena São Jerônimo da Serra, na margem do rio Tigre, afluente do Tibagi, no Paraná. “Ainda mais persistente do que a sobrevivência física tem sido a sobrevivência das práticas culturais”, conclui Marta.

José Tadeu Arantes/Agência Fapesp

Terra de Índio – Imagens em Aldeamentos do Império
Autora: Marta Amoroso
Editora: Terceiro Nome
Data: 2014
Páginas: 244
Preço: R$ 44

Mais informações: site www.terceironome.com.br/antropologia/terradeindio.html


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