Festival de teatro na USP discute questões de gênero e raça

Em sua quinta edição, Mostra da Escola de Arte Dramática tem programação com apresentações cênicas e debates

 28/02/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 26/04/2018 as 15:55
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A programação da 5ª Mostra da EAD é gratuita e acontece na escola, localizada no prédio do Departamento de Artes Cênicas da ECA, na Cidade Universitária – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Nesta quinta-feira, 1º de março, começa a 5ª Mostra da Escola de Arte Dramática (EAD) da USP. Até o dia 6, estudantes e recém-formados da escola apresentam espetáculos e exercícios cênicos ao lado de aulas abertas e debates tendo como tema Corpo, Espaço e Lugar. A programação é gratuita e acontece na própria EAD.

Neste ano, a mostra recebe os estudantes da Escola Livre de Teatro (ELT) de Santo André para participarem das discussões. Questões de gênero, sexualidade e raça são o centro dos debates. A organização é dos próprios alunos, sob orientação da diretora de produção Bertha S. Heller.

A escolha desses temas vem no momento em que a escola reserva 20% de suas vagas para candidatos Pretos, Pardos e Indígenas (PPI) e que metade dos aprovados de 2018 se autodeclararam negros e afrodescendentes. Esse também foi o primeiro ano em que pessoas trans puderam usar seu nome social para realizar a inscrição na prova.

“O desafio é articular, justamente nesse momento de violência escancarada e recorrente contra grupos e indivíduos das chamadas minorias, relações entre essas conjunturas e a situação atual da escola”, comenta a diretora da EAD, Sandra Regina Sproesser. A mostra acontece duas semanas após um estudante negro da instituição ter sofrido violência na Avenida Paulista, conforme relata a diretora.

Com foco na questão racial, está previsto para 2 de março o Fórum Preto, uma troca de experiências entre estudantes da escola e da ELT com o Núcleo de Consciência Negra da EAD, às 18h30. Já no dia 3, a mostra sedia conversa sobre mulheres nos espaços de formação artística, a partir das 14 horas.

Ainda na mesma data, a turma de recém-formados da escola apresenta, às 16 horas, o espetáculo Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos, criado a partir de textos do dramaturgo santista Plínio Marcos. No dia 4, às 19 horas, acontece a aula aberta Nhanhomoirumba: um panfleto-esquiva, sobre espetáculo dos estudantes do último ano da EAD desenvolvido a partir do contato com aspectos da cultura indígena.

“Houve muita conversa entre nós, alunos, e também uma discussão com a própria escola, porque não recusamos o que está acontecendo no mundo e isso reflete em nosso trabalho dentro da sala de aula”, explica a estudante do segundo ano Carolina Viana. Segundo a atriz, esses temas vêm há tempos acompanhando o corpo estudantil e o momento parece propício à reflexão. “É como se a gente não pudesse fugir, dentro de uma mostra de artes cênicas na USP, das questões que já estão refletidas na sociedade”, afirma.

Para Sandra, a escola, que completa 70 anos em maio, sempre esteve na vanguarda dessas discussões. Segundo a docente, elas são expressão dos conflitos nos quais a sociedade se vê e das transformações que ela exige.

“A EAD é uma escola de formação de atores para intervir no espaço da cidade”, diz. “O teatro é uma arte eminentemente política, que nasce junto com a pólis na Grécia. Essa conexão faz parte da tradição da escola.”

A programação completa do evento está em facebook.com/events/224873138084942/. A EAD se localiza na Rua da Reitoria, 215, no prédio de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Um novo ator para um novo teatro

Fundador e diretor da EAD por 20 anos, Alfredo Mesquita idealizou a escola para formar uma nova geração de atores sintonizados com um teatro mais artístico e menos mercadológico – Foto: Mário Castello via Enciclopedia Itaú Cultural

A Escola de Arte Dramática foi criada em maio de 1948 por Alfredo Mesquita (1907-1986) como uma instituição particular voltada à formação de atores. Por vinte anos, foi dirigida por seu fundador, que também custeou a maior parte de suas despesas. Ocupou diversos locais, como o Teatro Brasileiro de Comédia e o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, até ser anexada pela USP em 1968.

Nascido na rica e influente família de proprietários do jornal O Estado de S. Paulo, Mesquita estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e, durante a década de 1930, frequentou aulas na então recém-fundada Universidade de São Paulo.

Presença assídua nas salas de espetáculo paulistanas, Mesquita participou de cursos sobre artes cênicas nos Estados Unidos e na França e se dedicou à literatura e à produção de textos dramáticos. Em 1942, fundou o Grupo de Teatro Experimental (GTE), trupe amadora que buscava realizar trabalhos distanciados do teatro comercial de então. É a partir das experiências com o GTE que Mesquita veria a necessidade da criação de uma escola de formação de atores.

Segundo o professor da ECA Armando Sérgio da Silva, autor do livro Uma oficina de atores: a escola de arte dramática de Alfredo Mesquita, o teatro profissional da época era dominado por interesses comerciais e subordinado às grandes estrelas, como Procópio Ferreira, Dulcina de Moraes e Jaime Costa. A maior parte de seu repertório era composta de peças ligeiras, com esquemas dramatúrgicos fáceis e uma produção negligente. O foco era a performance do ator principal e, por isso, o texto dramatúrgico era frequentemente desrespeitado e mutilado.

“Alfredo Mesquita nos conta, a respeito da montagem de sua peça A esperança da família, que o ensaio na época foi inusitado”, escreve Silva no livro. “Todos chegaram no primeiro dia já sabendo os papéis, dada a grande tarimba do elenco. O ator Restier Jr. era quem fazia as marcações e o Procópio Ferreira não apareceu em nenhum dos ensaios. Era digno de pasmo o fato de que, durante os ensaios, ninguém se posicionava no centro do palco… era o lugar do Procópio.”

De acordo com Silva, a EAD surge para formar um novo ator para um novo teatro. Sua gênese está na busca pela capacitação de um ator disciplinado, que respeite o texto dramatúrgico e oriente-se para um trabalho de equipe.

Nessa primeira fase, sob direção do “Doutor Mesquita”, a escola conta com um corpo de professores convidados entre intelectuais e os principais profissionais da cena teatral. Ensinaram ou dirigiram na EAD durante seus primeiros anos nomes como Antunes Filho, Décio de Almeida Prado, Gianni Ratto, Gilda de Mello e Souza, Renata Pallottini e Sábato Magaldi. Conforme relata Silva, muitos profissionais trabalhavam mesmo sem receber, fazendo o amor pelo teatro suplantar as dificuldades financeiras da instituição.

A deterioração econômica se torna aguda a partir dos anos 1960 e a saída para evitar o fechamento da escola é sua transferência para a USP. A EAD passa a integrar a recém-nascida Escola de Comunicações Culturais (atual ECA), processo iniciado em 1966 e concluído em 1968. Nesse ano, Mesquita deixa o cargo de diretor e se afasta da escola.

Atualmente, a EAD integra a ECA como um curso técnico e divide espaço com o Departamento de Artes Cênicas da unidade. Enquanto a graduação ocupa o prédio durante o dia, os estudantes da EAD têm aulas noturnas, seguindo a tradição iniciada em 1948. Todo ano, 20 pessoas são selecionadas através de uma prova em quatro fases e passam por quatro anos de aprendizado.

Na EAD se formaram dezenas de atrizes e atores reconhecidos nacionalmente por seus trabalhos no teatro, no cinema e na televisão. Aracy Balabanian, Francisco Cuoco, Lilia Cabral, Nelson Xavier, Ney Latorraca e Gero Camilo são alguns dos nomes que frequentaram a escola.

Momento difícil

No ano em que comemora seus 70 anos a EAD volta a ser assombrada pela situação financeira. Segundo a diretora Sandra Regina Sproesser, a escola vive novamente um momento bastante difícil.

De acordo com a docente, o Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV) implementado pela Reitoria da USP em 2015 e 2016 reduziu de 18 para 10 o número de professores da instituição. A participação de profissionais de fora da escola, uma característica de seu plano pedagógico, também enfrenta problemas. A diretora afirma ainda que os estudantes do curso não têm acesso ao Hospital Universitário (HU) da USP.

“Embora a EAD seja, de um certo ponto de vista, a menina dos olhos da Reitoria e da ECA, ela não tem sido agraciada com as condições que merecia para funcionar. Nós estamos estrangulados com as condições que a Universidade tem nos imposto, sobretudo nos últimos anos, com a última gestão da Reitoria. Vamos ver como a gente sobrevive agora diante dessa nova conjuntura”, comenta Sandra, referindo-se à nova gestão do reitor Vahan Agopyan, iniciada em janeiro deste ano.


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