Reflexão sobre o microconto

Jean Pierre Chauvin – ECA

 27/06/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 28/06/2016 as 15:59
Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e Literatura Brasileira na ECA - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e Literatura Brasileira na ECA – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Julio Cortázar dizia que o conto estava para a fotografia, assim como o romance, para o cinema.[1] Conhecedor dos diversos gêneros em prosa e poesia, o crítico se valia desse eficiente par de imagens para facilitar a compreensão de seus ouvintes e leitores.

É sintomático que as considerações do argentino tenham sido amplamente disseminadas em livros didáticos e, com o advento da internet, inúmeros blogs frequentemente evoquem as definições legadas pelo escritor.

Nos últimos 20 ou 30 anos, o conto passou a outro estatuto. Se, tradicionalmente, o gênero era comparado – quase sempre em desvantagem – com o romance, a década de 1990 assistiu à assunção de novas formas de descrever e narrar, a que se tem dado o nome de miniconto, microconto e, até mesmo, nanoconto. Fiquemos com a segunda denominação.

À primeira vista, o microconto pode ser compreendido como sinal dos novíssimos tempos: ele dialoga com novas formas de representação – imediatas, objetivas, fragmentárias – que favorecem a economia de tempo dos leitores, habituados à leitura diagonal, em lugar da orientação linear.

Mas o que é contemporâneo, o que é novo, o que vem a ser novíssimo? Isso depende, claro esteja, de nosso referencial temporal e histórico e de nossa percepção, frente às mudanças de tom, forma, cor e gênero.

Graças à internet e aos meios eletrônicos de comunicação, e-mails fazem as vezes de cartas, convites, charadas, chistes e bilhetes; blogs, grupos e comunidades virtuais disseminam autores clássicos e novos; programas de rádio convertem-se em podcasts e programas de televisão transformam-se em canais nos sites de vídeo, em que a audiência é aferida segundo a quantidade de hits.

À primeira vista, o microconto pode ser compreendido como sinal dos novíssimos tempos”

Pode-se conjecturar que, paralelamente à linguagem mais ágil dos jornais digitais, a literatura acompanhou a marcha da cultura multimidiática. Basta lembrar que, na metade do século XIX, a crônica produzida no Brasil era bem mais extensa e assegurava que um mesmo espaço tratasse de assuntos díspares. Essa providência atenderia a uma demanda de leitores daquele tempo?

Da turma de cronistas mineiros, bastante populares a partir da década de 1970, Otto Lara Resende escrevia crônicas diariamente, com cinco, seis parágrafos – absolutamente simétricos na forma – como se vê em “Vista Cansada”, confeccionada meses antes de sua morte. Por suas mãos, o estatuto da crônica mudou, sem perder seu poder de reflexão e sensibilidade, acompanhando o ritmo acelerado da informação, da cultura e do entretenimento dos jornais.

De modo análogo aos gêneros em que prevalecem o comentário, as breves narrativas foram encolhendo de tamanho, especialmente no final do século XX. Dalton Trevisan é apontado como um dos pioneiros, em nossa literatura, a reduzir a extensão do conto, como se vê nos contos de Cemitério de elefantes, de 1964.

Dentre eles, “Uma vela para Dario” é cena trágica com pouco mais de uma página, que beira uma violenta crônica policial. O conto reúne personagens funcionais, mas sem nome – afora o protagonista, despossuído sob a chuva.

Pode-se conjecturar que, paralelamente à linguagem mais ágil dos jornais digitais, a literatura acompanhou a marcha da cultura multimidiática”

Ao lado do contista curitibano, deve-se mencionar a produção do paulistano Fernando Bonassi, autor do ótimo romance Subúrbio, publicado em 1994 – mesmo ano em que saiu Ah, é?, uma coletânea de contos minimalistas de Trevisan.

A exemplo dos microcontos do escritor paranaense, o livro Passaporte, de Bonassi, editado em 2001, contém 137 brevíssimas narrativas, que ora lembram a linguagem dos cartões-postais, ora a dicção típica dos apontamentos de viagem, a oscilar entre a digressão e a sentença sumária.

Em 2004, Marcelino Freire compilou micronarrativas de diversos autores em Os cem menores contos brasileiros do século, obra essencial para compreendermos melhor as variedades sugeridas e referendadas pelo novo gênero, por aqui. No ano seguinte, Contos negreiros consolidava os novos rumos do conto contemporâneo, pelas mãos do próprio escritor pernambucano em sua terceira obra.

Temas candentes, que estão na raiz de nosso passado escravocrata, autoritário e brutal, são redigidos de modo enxuto e casam-se perfeitamente à linguagem enfática em que os juízos do narrador são tão impactantes quanto econômicos.

De Porto Alegre, chega a voz de Verônica Stigger, cuja obra Os anões, de 2010, combina temas polêmicos ao tom aparentemente frio, mas provocativo, de seus narradores e personagens.

De modo similar a Passaporte, de Fernando Bonassi (publicado pela mesma editora nove anos antes), trata-se de narrativas mínimas, mas de efeito máximo, em que o formato e a textura plastificada do objeto livro, fornido com ilustrações que esmaecem as margens da palavra, transcende os limites do conteúdo e adere ao estatuto de autoria/editoria.

Alarga-se o conceito da arte e do ofício de escrever. Isso pressupõe a representação de diversas formas de fetiche, compreendendo a literatura não só no plano estético, mas como terreno de perversões, a ironizar a forma mercadoria, na qual a arte também se inscreve.

Se o conto disputou lugar com o romance, pelo menos desde o século XVII, na disseminação de histórias, é inevitável pensar que algo similar acontece na relação entre o microconto e o conto ou a novela. Evidentemente, a escala de comparação diminuiu, bem ao gosto das novas formas e usos da comunicação.

Talvez por esse motivo, haja resistência de uma parcela da crítica em avaliar ou validar esse novo gênero. Talvez tenha em vista algumas de suas especificidades, associado a ressalvas quanto às relações fluidas, superficiais e apressadas deste agora.

Se o conto disputou lugar com o romance, pelo menos desde o século XVII, na disseminação de histórias, é inevitável pensar que algo similar acontece na relação entre o microconto e o conto ou a novela”

Por outro lado, haveríamos de ponderar que conteúdo, forma e expressão contagiam os olhos de quem lê? Ou se trata de movimento de idas e vindas entre autor, obra e público, em que a atenção do leitor é justamente estimulada pela linguagem mais crua, direta e econômica da era virtual, aparentemente sem lugar ou tempo para representar ou discutir arestas?

A menor extensão do texto literário impediria que detectássemos sua qualidade? Questões de somenos, sendo essa uma microrreflexão.

Porventura seja o caso de leitores e críticos forjarem um novo aparato conceitual e teórico, com vistas a se situarem perante o gênero com uma nova voz, a partir de novos postos de observação.

Assim como é desejável que respeitemos as convenções retóricas e poéticas, ao ler tratados, sermões, cartas e poemas redigidos entre os séculos XV e XVIII; assim como consideramos o inegável papel do folhetim, na disseminação de crônicas, contos e romances, durante os Oitocentos, parece ser o caso de perceber o microconto não como um fenômeno editorial isolado, em que supostamente o alarde da expressão não condiz com o valor do material, mas como gênero em constante diálogo com o cenário e a linguagem de outro tempo. Por enquanto o nosso.

[1]      “Alguns aspectos sobre o conto”, em Valise de cronópio, tradução de Davi Arrigucci Júnior, São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 151.


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