Oliveiros Ferreira, analista do Poder

Rolf Kuntz é Professor do Depto. de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 17/11/2017 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 27/11/2017 as 8:45
Rolf Kuntz – Foto: Divulgação / Instituto Millenium

 Instigante  desde o título, a tese de livre-docência de Oliveiros S. Ferreira, Os 45 Cavaleiros Húngaros, é apresentada com uma advertência: “Não sei se se poderá chamar este trabalho de ‘leitura’ dos Cadernos; se a expressão couber, deveria completar-se pela qualificação: heterodoxa”. A heterodoxia aparece em mais de uma forma.  Uma delas é logo apontada pelo autor.  Mais que uma leitura, adverte Oliveiros, o texto apresenta um diálogo com Gramsci. Esse diálogo é desenvolvido em várias etapas, num esforço de precisão e de esclarecimento da noção de hegemonia.

O título da tese, atraente e incomum para os padrões da academia, remete a um escrito do próprio Gramsci, apresentado no fim do volume.  Esse texto resume um episódio da Guerra dos Trinta Anos, quando 45 cavaleiros húngaros controlaram  por mais de seis meses, tiranicamente, a população de Flandres. Como o conseguiram? Essa pergunta remete a uma questão simétrica: como e por que o grande número, mais forte, se submete ao pequeno?

Essa indagação, retomada no fim do livro com a história dos cavaleiros,  aparece no início, como pergunta fundamental e motivação do estudo  sobre os Cadernos de Gramsci. A questão, apontada como o problema “talvez fundamental da Ciência Política”, é apresentada tal como Rousseau a formulou no Discurso sobre a Desigualdade.

Esse Discurso  foi escrito, segundo seu  autor, para “assinalar, no progresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, se submeteu a natureza à lei”, ou, em outras palavras, para  “explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real”.

A Ciência Política, afirma Oliveiros algumas páginas adiante, deve buscar a solução desse problema à luz do conceito de hegemonia. Ao construir esse conceito, Gramsci procurou realizar essa tarefa. O diálogo com Gramsci é um esforço para esclarecer o conceito, acompanhando as etapas de sua construção.

Acompanhar esse percurso impõe ao leitor uma atenção constante aos detalhes  de uma argumentação complexa, com meandros inesperados e referências a uma coleção notável de fontes. Mas é difícil imaginar uma alternativa mais simples e confortável.

Os Cadernos produzidos no cárcere expõem uma obra em construção. Passo a passo, a tese mostra esse processo, confrontando textos escritos em diferentes momentos e expondo, dessa forma, fases de elaboração do pensamento de Antonio Gramsci.

Oliveiros apresenta já na introdução do livro sua noção de hegemonia: “a supremacia de uma concepção do mundo sobre outra, ou, traduzido na linguagem da apreciação do comportamento cotidiano, a supremacia de uma conduta sobre outra”. Mas a apresentação desse conceito oferece ao leitor apenas uma primeira luz para ingressar no percurso.

Ao longo do caminho, a noção gramsciana, formulada inicialmente como “sinônimo de força mais consenso”, é depurada, com a redução gradativa da importância do componente “força”. O laborioso confronto de passagens  contidas em diferentes etapas dos Cadernos mostra essa evolução.

Mas o “diálogo” com Gramsci, apontado inicialmente por Oliveiros como sinal de uma tese heterodoxa – mais  ambiciosa que uma leitura reverente   – é  provavelmente a menor das heterodoxias. A mais notável, mais típica do estilo do autor e, talvez por isso, despercebida por ele mesmo,  é a própria concepção do objeto e, portanto, de seu tratamento.

Marx é citado no texto, mas a tradição marxista de nenhum modo aparece como quadro de referência para a discussão. Gramsci é estudado como um cientista político em sentido meramente acadêmico, muito mais do que como um pensador  político ligado ao marxismo. De certa forma, esse tratamento é anunciado na abertura da tese,  quando se apresenta o grande problema tal como formulado por Jean-Jacques Rousseau. O trabalho gramsciano é logo situado, portanto,  no universo geral da investigação teórica,  sem referência à sua vinculação com o marxismo.

Com mesma sem-cerimônia, Oliveiros havia usado passagens de Trotsky ­–para lembrar só um dos autores citados – em  sua análise da Geopolítica do Brasil, do general Golbery do Couto e Silva, uma das figuras principais e referência intelectual do grupo instalado no poder no começo do regime militar. Nenhum outro crítico publicou uma análise tão precisa, tão severa e tão rica, do ponto de vista acadêmico, do livro de Golbery. Nenhum crítico de Oliveiros, naquela época, usou contra ele, ou contra Golbery, argumentos tão sérios quanto aqueles empregados por ele no exame da Geopolítica.

Mas é tempo de esclarecer um detalhe relevante para entender e avaliar o trabalho acadêmico do Oliveiros. Ele usa no livro sobre Gramsci a expressão Ciência Política, menos informativa, no seu caso, do que Sociologia Política. É este, de fato, seu campo preferencial de estudo.

Num texto produzido para um volume em sua homenagem, organizado pelo professor Carlos Henrique Ruiz Ferreira, Oliveiros dedica seu ensaio aos “cultores da Sociologia Política”. Ele retoma nesse trabalho um tema já explorado em outras discussões a respeito do Brasil: a importância das condições espaciais, desde o início da ocupação,  para a formação dos grupos sociais espalhados pelo território, para  o desenvolvimento das diferentes unidades administrativas e, enfim, para a constituição de um Estado nacional com as dimensões atuais. Ao sublinhar a relevância do espaço, Oliveiros lembra  a necessidade de “atentar, seguindo as lições de Durkheim,  para a densidade e o volume dos grupos sociais em presença”.

Mais uma vez, nesse trabalho, Oliveiros dedica boa parte da análise no contraste entre as forças do localismo e o papel do poder central – também  no período republicano – como grande fator de coordenação e de consolidação de um espaço nacional.  Os temas e referências desse texto são familiares a quem foi aluno de Oliveiros nos anos 1960. Nada mais natural, para quem teve essa experiência, que encontrar na mesma bibliografia Oliveira Viana (algo quase escandaloso, naquele tempo),  Durkheim e Antonio Gramsci.

A opção de Oliveiros pela Sociologia Política, com ênfase no termo Sociologia, marca totalmente, ou quase, ou seu trabalho acadêmico. Mas a constância envolve mais que a forma de  tratamento dos problemas. Também se percebe a permanência de preocupações com alguns temas. Ele mesmo o indica, na introdução à sua tese de livre-docência, ao lembrar seu trabalho de doutorado, Nossa América, Indoamérica, onde os “fortes” mencionados na formulação rousseauniana aparecem como “o amplo setor de despossuídos”.

Como jornalista, Oliveiros aplicou sua competência acadêmica  à discussão de grandes temas de política interna e externa. Seu conhecimento excepcional de assuntos de  segurança e de questões de estratégia internacional distinguiu suas informações e análises. Os  artigos para jornal,  mais breves e menos detalhados que os trabalhos acadêmicos, eram geralmente construídos com linguagem de maior impacto e, até por isso, provocantes.   Seu trabalho no jornalismo, desenvolvido em décadas no Estado de S. Paulo, foi muito além da elaboração de textos.  Tendo começado a carreira como repórter, Oliveiros foi, além de articulista, editor, secretário, diretor de redação e coordenador de editoriais. Quem pôde acompanhar seu trabalho tanto na imprensa quanto na academia foi certamente um privilegiado.

Oliveiros S. Ferreira morreu em 21 de outubro, com 88 anos.

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