Tristeza: a perda de Ada Pellegrini Grinover

Camilo Zufelato é professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto e foi orientado por Ada P. Grinover

 19/07/2017 - Publicado há 7 anos

Camilo Zufelato – Foto: Reprodução / Youtube

A poucos dias da morte de Ada Pellegrini Grinover, além da tristeza e do pesar sentido por tantos amigos e admiradores da professora, se delineia com clareza o que já era esperado: sua figura e seu legado restarão indeléveis não somente no meio universitário e jurídico, mas em todos os ambientes nos quais essa pessoa, com brilho e carisma desiguais, de alguma forma, esteve presente. Ada era única. De personalidade forte, determinada, com genialidade de espírito e senso de humor refinado, sua sagacidade foi aproveitada da forma mais eficiente possível, pois aliada a uma força de trabalho incansável. A morte inesperada, ainda que no alto de seus 84 anos, interrompeu abruptamente uma mente que estava em plena capacidade intelectual, produzindo com inteligência e a maturidade que os anos lhe deram.

Destemida, a ítalo-brasileira enfrentou os maiores desafios que a vida pode impor a alguém. Sua infância foi marcada por viver intimamente a Segunda Guerra Mundial, e com a prisão do pai, um importante ministro do regime fascista italiano, ainda muito criança, foi protagonista na execução de um plano de fuga da prisão. Imigrada, a jovem de elevada formação humanística obtida na Europa desponta como um grande talento, não somente nos estudos jurídicos, no Largo de São Francisco, mas também nos diversos setores que a vida universitária lhe permitiu interagir: foi atleta de elite e também engajada nas lutas estudantis de sua época, especialmente para reconhecer maiores espaços de atuação para as mulheres. Para os anos 50 do século passado, envolver-se nesses assuntos, sendo uma jovem, estrangeira, mulher, revela uma personalidade de luta. Foi também figura de destaque e à frente de seu tempo na vida acadêmica, toda ela consagrada na USP: primeira doutora mulher em Direito, primeira professora de Direito Processual, primeira titular de Direito Processual, pró-reitora de Graduação e candidata a reitora.

No campo jurídico, são incontáveis os avanços que propôs e deles foi força motriz. Foi revolucionária no campo do direito processual. Seus escritos marcam a renovação dessa ciência no Brasil e mesmo em outros países, e teve uma atuação intensa e profícua no campo legislativo, como propositora ou partícipe de projetos de lei marcantes no País.

Os que tiveram o benefício de seu convívio – e não foram poucos, pois Ada foi uma alma de espírito aberto, se relacionava com todos, e sempre tirava lições de cada experiência vivida – lembrarão para sempre da dureza e da sinceridade de suas colocações, sempre diretas e sem rodeios, certeiras e estonteantes, as quais logo eram bem compreendidas e não restava qualquer mágoa. Isto porque outro traço marcante de seu caráter eram a bondade e a solidariedade. Atendia a todos, com dedicação e entusiasmo, e sempre disponível para auxiliar no que fosse preciso. Movia tudo que fosse necessário para atender a uma solicitação que entendesse que deveria ser atendida.

Um dos maiores atributos da inteligência é o humor, o que Ada tinha de sobra. Adorava se divertir com histórias engraçadas, e tinhas as suas também, deliciosas. O sorriso fácil, ainda que depois de proferir sentenças tão duras, certamente uma virtude adquirida do povo brasileiro, é uma marca sua, que carregará para sempre quem puxar pela memória a face da professora.

A paixão por boas histórias e pela escrita rendeu-lhe um fértil campo na literatura não jurídica. Livros autobiográficos, romances, poemas, misto de ficção com realidade, enfim, de tudo escreveu essa alma inquieta e de inteligência superior, revelando sua faceta de excelente contadora de histórias.

Foram tantas as realizações e empresas vividas por Ada que é como se tivesse vivido várias vidas em uma só. Somente seres iluminados e especiais têm a oportunidade de vida de ter experiências tão ricas – boas e más – e delas tirar as lições que tirou, lapidando-se e fazendo-se a pessoa única que foi. E acredito que, dentre todas as suas conquistas, a de que mais se orgulhava era a de ter bons amigos.

Seus amigos, espalhados por todo o mundo – e não é força de expressão –, e muitos deles desta Universidade, a quem a própria Ada reverenciou no marcante discurso de posse como professora titular da Faculdade de Direito (“A esses amigos que, fisicamente ou me acompanhando de longe, mais uma vez dizem ‘presente’. Amigos devotados e desprendidos, que me apoiaram nos momentos difíceis, que me ampararam quando o espírito fraquejava, que me animaram quando a luta era mais árdua. Sem eles – e são tantos – as barreiras teriam sido intransponíveis, as pedras do caminho ásperas demais, os sobressaltos da estrada insuportáveis”), deverão se acostumar com a saudade, que já dói pela ausência física e de sua genialidade, mas sempre levarão consigo as melhores lembranças e lições que essa professora-amiga em algum momento deixou. Não haverá outra Ada nesta vida; é preciso acostumarmo-nos a viver sem a alegria de sua presença.

 


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