Convívio com Antonio Candido – momentos

João Baptista Borges Pereira é Professor Emérito da Universidade de São Paulo

 19/05/2017 - Publicado há 7 anos

João Baptista Borges Pereira – Foto: Francisco Emolo / Arquivo Jornal da USP

Mil novecentos e cinquenta e cinco. Entrei pela porta ampla, toda de ferro e vidro, do prédio da Rua Maria Antonia, logo de manhã, onde iria realizar a prova de redação no vestibular em Ciências Sociais. À minha espera, solidário comigo, andando pelo vasto saguão do prédio, estava Jorge Nagle, meu amigo de infância e colega nos cursos ginasial e normal do Instituto de Educação Leonidas do Amaral Vieira, de nossa cidade, Santa Cruz do Rio Pardo. Mais do que eu, Nagle estava ansioso para saber o nome do professor que iria me examinar. Disse-lhe o nome, desconhecido de ambos. Nagle foi ver pela janelinha da porta o desconhecido examinador.

Viu o “desconhecido” e foi logo me dizendo: “Trocaram o examinador. Você vai ser examinado pelo Antonio Candido”. Fiquei petrificado. Afinal, Candido, que eu não conhecia pessoalmente, fora professor de minha professora de Sociologia do Curso Normal – Adalgiza Araújo de Castro Rangel. Em suas aulas bissemanais ela se baseava em cursos que tivera com Fernando de Azevedo e, principalmente, com Antonio Candido. Ela narrava apaixonadamente em seu curso como eram as aulas de Candido, quais os temas por ele preferidos, quais os seus recursos didáticos. Enfim, ela tecia semanalmente o perfil de um admirável professor ministrando aulas de uma admirável disciplina pela qual me apaixonei. As aulas dessa professora  permitiram que delineasse Antonio Candido como espécie de “mito distante” que eu, então, imaginava nunca iria conhecer. Tudo isso veio à minha memória quando entrei na sala e pude conhecê-lo pessoalmente.

De forma elegante, cumprimentou os candidatos e colocou na lousa o tema da redação – O homem nasce, vive e morre nos braços da sociedade. Perguntei-lhe, um tanto ousadamente: “Professor, o tema pode ser focalizado do ponto de vista da sociologia?”. De pronto, ele me respondeu: “Pode, mas a sua redação será avaliada do ponto de vista literário e sociológico”. Aceitei o desafio, o duplo desafio, e fiquei entre os 11 aprovados naquele vestibular.

Reencontrei Antonio Candido no segundo ano de Ciências Sociais, em curso com duração de dois semestres. O programa tinha como tema central Organização Social, baseado principalmente na antropologia social inglesa, o que me levou definitivamente para a área de uma antropologia profundamente mesclada à sociologia. A minha professora de Sociologia tinha razão: as aulas de Antonio Candido eram admiráveis, não só pela sua didática, mas pela forma aparentemente leve de abordar temas complexos – mais do que isso: às vezes, sem quebrar o seu estilo elegante, ele dedicava tempos finais das aulas para imitar colegas. A classe esperava ansiosa o instante em que ele colocava em cena Roger Bastide, Florestan Fernandes, Egon Schaden, Cruz Costa e, principalmente, Fernando de Azevedo. Foram momentos inesquecíveis de um mestre inesquecível.

Durante essas aulas (1956) ele usava bastante a sua rica experiência de pesquisador do mundo rural paulista. São experiências que estavam em sua tese de doutorado – Parceiros do Rio Bonito –, publicada em livro quase dez anos depois, e que se tornou um clássico da literatura sociológica do Brasil. Ele aproveitava esses instantes de suas aulas para imitar o caipira por ele entrevistado. Lembro-me que a seu pedido recolhi, em minhas férias de julho, modas caipiras do Vale do Paranapanema.

Na altura de 1960, compusemos uma leva de professores da USP que foram consolidar os Institutos Isolados (hoje Unesp), recém-criados pelo governador Jânio Quadros. Antonio Candido e eu fomos para o oeste do Estado: ele foi para Assis assumir e estruturar a Cadeira de Crítica Literária e eu fui para Presidente Prudente, para assumir a Cátedra de Antropologia. Em 1963, estávamos de volta à USP, à “velha” FFLCH, após liberação de verbas pelo governador Carvalho Pinto.

Na USP, embora em departamentos diferentes, mantivemos contato permanente, especialmente no Instituto de Estudos Brasileiros, onde compúnhamos o Conselho do IEB juntamente com os professores José Aderaldo Castelo, Eduardo Kneese de Mello, Sergio Buarque de Holanda, entre outros.

Tive, também, a oportunidade de coparticipar com o professor de inúmeras bancas (mestrado, doutorado e livre-docência). Dentre tantas, uma ficou em minha memória. Estávamos examinando uma candidata à livre-docência, que respondia sempre às questões levantadas pelos examinadores de forma quase agressiva. No intervalo, indo do salão nobre à cantina do café, Candido revelou-me estar surpreso com o tom das respostas da candidata, que ele conhecia como pessoa muito elegante e educada. Dei-lhe a minha interpretação: a candidata não obtivera nota 10 em seu doutorado, talvez isso a tenha colocado numa espécie de defesa. Nesse momento, tive a grande e surpreendente revelação de Candido: “Se não conseguir tirar 10 fosse motivo de atitudes grosseiras, então eu teria virado a mesa no meu doutorado (Parceiros do Rio Bonito)”. E completou: “Eu nunca obtive um 10 em minha vida”. Confesso que fiquei perplexo com a revelação do mestre, pois Parceiros do Rio Bonito era e é, ainda hoje, modelo de tese que se tornou um clássico, pelos dados de pesquisa e pelas reflexões ensaísticas em sociologia. Ainda perplexo com a confissão, quis saber do meu permanente professor o porquê de não ter tirado a nota mais alta. Ele me respondeu tranquilamente: “Foi o professor Roger Bastide o responsável. Ele me disse que não saberia dizer se a minha tese era de sociologia ou de antropologia. Por essa alegada ambiguidade teórica me deu 9”.

Depois de aposentar-se, o professor Candido raramente ia à FFLCH. Para manter contato com o mestre passei a lhe telefonar semanalmente, em geral, às quartas-feiras. Vez ou outra ia a sua casa para visitá-lo pessoalmente. Num desses telefonemas, ele me surpreendeu ao pedir-me que, na primeira oportunidade, o acompanhasse a um culto dominical da Igreja Presbiteriana Independente, com uma exigência: que o pastor não fizesse qualquer referência a sua presença na igreja. Foi então que ele me contou sua convivência inesquecível com uma professora protestante do Colégio Mackenzie (colégio em que ele foi aluno) lá em Poços de Caldas. Essa professora ensinou-o a orar, orientou-o a ler, se possível, diariamente, a Bíblia e o familiarizou com hinos que ela cantarolava com frequência. Combinamos, então, algo que nunca realizamos por múltiplas razões.

A última vez que lhe telefonei foi na quarta-feira, dia 10 de maio, à tarde. Emocionado, ele me consolou pela morte recente de Valéria, minha filha caçula. Lembro-me de suas últimas palavras: “O filho sepultar o pai é doloroso, mas nada comparável a um pai sepultar uma filha, experiência pela qual nunca passei. Nunca poderia imaginar que você fosse passar por isso. Incrível. Sua filha jovem se foi e eu aqui me aguentando nos meus 98 anos”.

No dia seguinte, o meu professor morreu inesperadamente.

 

 


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