Michel Michaelovitch de Mahiques é professor titular do Instituto de Oceanografia (IO-USP) e vice- diretor do mesmo instituto desde dezembro de 2013 – Foto: Cecília Bastos USP/Imagens
O parágrafo anterior serve de introdução a uma pergunta que já foi feita: deve a USP ter um navio oceanográfico como o Alpha Crucis? Em primeiro lugar, devo explicar que esta pergunta não equivale a perguntar se deve a USP ter carros, tratores ou caminhões.
A real correspondência a essa pergunta é: deve a USP ter tomógrafos de última geração, aceleradores de partículas, espectrômetros de massa e outros equipamentos de ponta? E a resposta é óbvia: é claro que deve! E deve porque o Alpha Crucis não pode ser encarado apenas como um meio de transporte para levar docentes, alunos e técnicos para o meio do mar.
O Alpha Crucis é, em si, um laboratório, com características particulares, operado por pessoal altamente especializado e que tem ajudado a mudar a cara das Ciências do Mar no Brasil.
Não faltaram e não faltam críticas à aquisição do Alpha Crucis. O navio foi comprado com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com apoio da USP, para substituir o já obsoleto navio oceanográfico Prof. W. Besnard, que havia sofrido um incêndio em 2008.
Trata-se de um navio que já havia operado no Oceano Pacífico e que, quando adquirido, passou por uma reforma para atender aos requisitos mais exigentes de segurança da legislação marítima internacional. Além disso, passou por uma grande modernização no sistema de posicionamento e navegação e ganhou equipamentos científicos de última geração.
Entre sua chegada a Santos, em 2012, e o final de 2013, o navio percorreu mais de 20.000 milhas, executando cerca de 250 estações oceanográficas, em 13 cruzeiros que envolveram centenas de pesquisadores e alunos, do Brasil e do exterior. Deu suporte a projetos que visavam a estudar a circulação do Oceano Atlântico, o fluxo de carbono e o aporte de contaminantes gerados na costa para o oceano, dentre outros.
Neste sentido, devo dizer que a chegada do Alpha Crucis representou um marco na soberania da pesquisa, não só na margem continental brasileira, mas, também, estendendo-se ao Atlântico Sul.
Hoje temos uma plataforma de pesquisa que permite a travessia, de Santos à Cidade do Cabo, e sua volta, fazendo pesquisas e sem necessidade de parada para abastecimento de óleo combustível ou água.
Mas a manutenção de uma plataforma de pesquisa, como é o Alpha Crucis, não é simples e tampouco muito barata. Não é trivial manter a operação de um gigante de 64 metros de comprimento, que desloca 972 toneladas. A legislação internacional exige que, a intervalos regulares, o navio passe por uma vistoria completa, que envolve sua docagem.
E é aí que reside um dos maiores entraves da ciência brasileira: a burocracia. Burocracia que faz com que a manutenção de um equipamento de pesquisa seja tratada exatamente da mesma maneira que qualquer outro procedimento que envolva a utilização de recursos públicos.
A real correspondência a essa pergunta é: deve a USP ter tomógrafos de última geração, aceleradores de partículas, espectrômetros de massa e outros equipamentos de ponta? E a resposta é óbvia: é claro que deve! E deve porque o Alpha Crucis não pode ser encarado apenas como um meio de transporte para levar docentes, alunos e técnicos para o meio do mar.
E então começa a novela de licitações desertas e fracassadas, que duraram um ano. E, finalmente, um serviço que, devendo durar 45 dias, arrastou-se por intermináveis 16 meses. E uma fila interminável de demandas de utilização de navios e projetos científicos, nacionais e internacionais, prejudicados.
Com tanta demora, não houve quem, inclusive na grande imprensa, por ignorância ou má fé, alardeasse que o navio estava com problemas mecânicos insolúveis.
Mas, para frustração dos profetas do apocalipse, o navio aí está, em plenas condições de operação. Tive a felicidade de chefiar a primeira expedição pós-vistoria. Foram mais de 2.000 milhas, em 17 dias de mar, estudando a topografia do fundo marinho, coletando amostras de água e de sedimento e, mais importante, colaborando na formação de alunos da USP e de outras universidades públicas. Dos 19 pesquisadores, 13 eram alunos de graduação ou pós-graduação, sendo que foram oferecidas duas vagas para alunos de cursos de Oceanografia que não dispõem de embarcações.
Vivemos tempos bicudos no Brasil. São tempos em que o apoio público à ciência e à tecnologia é escasso e há mesmo quem questione, duramente, o financiamento público da pesquisa, numa onda que vai na contramão de países que têm se destacado no tema.
Hoje temos uma plataforma de pesquisa que permite a travessia, de Santos à Cidade do Cabo, e sua volta, fazendo pesquisas e sem necessidade de parada para abastecimento de óleo combustível ou água.
E a USP vive sua crise financeira. Mas o que faz a USP se manter no topo dos rankings internacionais de pesquisa? O que faz a USP manter a liderança incontestável nos cursos de graduação e pós-graduação?
A USP é o que é em função de seu patrimônio humano, docentes, técnicos e alunos, mas, também, em função do patrimônio científico, de seus laboratórios e seus equipamentos de pesquisa. E é fundamental que esse patrimônio seja mantido, e essa manutenção não pode ser medida apenas em reais ou dólares americanos.
Manter o Alpha Crucis é um desafio. Mas, mais do que um desafio, é uma decisão estratégica sobre o papel que a USP e os pesquisadores brasileiros pretendem exercer nos mais diversos aspectos das Ciências do Mar, em termos mundiais.
Este texto foi escrito por um uspiano apaixonado pelo que faz, e não representa, necessariamente, a opinião de qualquer instituição da Universidade.