A ciência pela história, episódio 4 – Da tabela periódica ao desenvolvimento econômico

Por Gildo Magalhães, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 Publicado: 18/06/2024

Qual o papel social do cientista?

Esta é uma pergunta para cuja resposta pode-se refletir na obra do russo Dmitri Mendeleiev (1834-1907), cuja trajetória na química moderna é conhecida. Contudo, poucos conhecem a dimensão desenvolvimentista desse cientista, motivo pelo qual abordaremos brevemente ambos os aspectos, começando pela tabela periódica.

A antiga hipótese atômica, lançada de forma precursora nas teorias dos gregos Leucipo e Demócrito, com o sentido de que existiria um constituinte último da matéria, foi retomada e atualizada em 1805 pelo inglês John Dalton, permitindo explicar por que nas reações químicas as proporções dos elementos são constantes: é que numa reação específica os mesmos elementos sempre se combinam a partir de suas propriedades fixas.

A teoria de Dalton acabou, no entanto, sendo modificada, porque ela não distinguia entre átomos e suas combinações em moléculas. Em 1831 o inglês William Prout propôs que os pesos dos elementos químicos deviam ser múltiplos inteiros de um elemento básico, para o qual se candidatava o átomo mais leve que há, o de hidrogênio. É como se os demais elementos fossem uma “evolução” da matéria a partir de um elemento primordial, de certa forma ecoando na química aquilo que estava sendo objeto de estudos intensos dos naturalistas – a evolução dos seres vivos. A controvérsia em torno daquela distinção entre átomos e moléculas perdurou, entretanto, tendo sido necessário apelar ao que era então um novo agente para decidir a questão: a “comunidade científica”. Para isto se reuniu em 1860, em Karlsruhe (Alemanha), o primeiro congresso internacional de química, vencendo a alternativa da diferença entre átomo e combinação de átomos.

Um dos participantes desse congresso foi Mendeleiev, que nessa época fazia um estágio na Alemanha, onde havia muitos químicos renomados. Ele se mostrava particularmente impressionado com as tentativas que estavam sendo feitas para ordenar os elementos químicos numa sequência evolutiva de acordo com o incremento dos seus respectivos pesos atômicos, mas também para encontrar relações de parentesco entre eles, no sentido de propriedades em comum.

O sistema que com o tempo se revelou mais completo foi justamente o proposto por Mendeleiev, que ultrapassou o de seu concorrente mais próximo, o alemão Julius Lothar Meyer. Com base em convicções filosóficas sobre o papel do indivíduo, Mendeleiev dizia que “a noção de átomos revela, simultaneamente, as singularidades das individualidades, a reiteração infinita dos indivíduos e sua sujeição à ordem harmônica da natureza”. Ele expôs seu sistema em uma famosa obra, Princípios de Química (cuja primeira edição foi em 1871), que foi logo adotada como livro-texto, com seguidas edições e traduções para várias línguas.

Ao contrário de outros químicos, que procuravam apenas semelhanças entre os elementos, Mendeleiev se concentrou também nos contrastes entre eles, o que lhe permitiu agrupar os elementos em diferentes “famílias”: halogênios, metais alcalinos, metais alcalino-terrosos etc. Esse ordenamento foi a chave do sucesso da sua “tabela”, com a qual se tornou possível prever que elementos da mesma família exibiriam grandes semelhanças em aspectos diversos, tais como comportamento químico e elétrico, densidade, ponto de fusão e outras características.

A tabela periódica de Mendeleiev tem sido apontada como uma etapa decisiva para o entendimento da química moderna, comparável na física às leis de Kepler. Isto faz sentido quando se considera o paralelo de sucesso que existe entre a harmonia da matéria descortinada pelo sistema da tabela periódica dos elementos químicos e a harmonia do universo, proposta por Kepler a partir das distâncias dos planetas dentro do sistema solar. Tanto num caso como noutro, foi possível fazer previsões bem-sucedidas. A descoberta posterior a Kepler de novos planetas, luas e outros corpos celestes se adequou à hipótese de posições definidas de órbitas, assim como a tabela periódica, que apesar de ter várias lacunas na época de Mendeleiev, foi pouco a pouco sendo preenchida com a descoberta de novos elementos químicos, que se encaixavam dentro dos grupos com as propriedades previstas pelo cientista russo.

Não é de se admirar nesse contexto que haja elementos químicos cujos nomes se referem a corpos celestes do nosso sistema solar como, por exemplo, titânio, cério, selênio, plutônio, urânio. A evolução temporal dos elementos químicos com a formação do universo é ainda um objeto de estudos fascinante, supondo-se que havia apenas elementos mais leves, que foram com o tempo se transformando nessa estrutura hoje conhecida como “tabela periódica de Mendeleiev”. A comprovação, a partir das pesquisas nucleares, da existência dos elementos chamados de “transurânicos”, que são em geral instáveis e se apresentam de forma ou natural ou artificialmente produzida pelo homem, veio confirmar os poderes de previsão da tabela. Hoje a tabela contempla 118 elementos, mas ao que tudo indica esse número pode crescer muito mais ainda.

Várias propriedades desses elementos novos descortinam possibilidades imensas para a economia do futuro, uma perspectiva política que teria agradado muito a Mendeleiev. Para entender o porquê, é preciso lembrar que Princípios de Química contêm ainda outra faceta do autor: nesse livro ele escreve enfaticamente suas opiniões sobre a necessidade do desenvolvimento econômico do seu país. Numa época de grande reacionarismo por parte das classes altas russas, ele tinha tido a sorte de ser educado em sua Sibéria natal por pessoas de convicções liberais. Quando voltou de seu estágio na Alemanha, Mendeleiev se espantou ao tomar consciência do atraso russo, tanto científico quanto econômico, e começou a advogar a introdução da ciência na vida da nação, começando pela agricultura com o uso de adubos químicos.

Mendeleiev vivenciou naquela época os ares de liberalização proporcionados pelo czar Alexandre II, que em 1861 havia decretado o fim da servidão na Rússia e preparou um grandioso plano de integração territorial. O químico se esforçou então para difundir a necessidade de educar o povo russo e despertar seu interesse pela química industrial, que deveria ser maciçamente aplicada ao desenvolvimento nacional. Em sucessivas revisões de seu livro Princípios de Química, exortou os leitores a participar do desenvolvimento econômico russo. Sua pregação era por um projeto nacional de país, que permitisse à Rússia vencer o subdesenvolvimento e se tornar uma nação mais poderosa e socialmente mais justa. Uma das grandes oportunidades que então se ofereciam era a recente descoberta de enormes jazidas de gás natural e petróleo em território russo, e Mendeleiev via claramente a necessidade de usar esse potencial para a industrialização do país.

Ele foi nomeado assessor especial do governo em 1891, apesar da oposição dos círculos acadêmicos mais conservadores, que viam com desconfiança sua posição liberal. Nessa condição, Mendeleiev defendeu, além do uso da química, a formação da indústria pesada e a construção de ferrovias ligando os centros de produção com as grandes cidades russas. Incentivou a construção de refinarias de petróleo, a indústria de carvão e ferro, além de se dedicar a projetos de construção naval e desenvolvimento de rotas de navegação, e propor políticas tarifárias protecionistas para salvar a Rússia das investidas imperialistas estrangeiras. Outra intervenção sua foi a mudança do sistema de pesos e medidas, cujo serviço dirigiu após 1893.

A modernização da economia e a industrialização pesada russa se dariam sob o comando do estadista e ministro Sergei Witte, que a partir de 1889 esteve à frente da construção das grandes ferrovias russas, inclusive a Transiberiana com mais de nove mil quilômetros de extensão, bem como cuidou da extração intensiva de minérios e petróleo. Como se sabe, estes pilares têm garantido uma posição privilegiada da economia russa ao longo dos tempos.

O esforço de liberalização e inserção da Rússia como um estado capitalista europeu moderno esbarrou, contudo, no crescente autoritarismo dos novos czares Alexandre III e Nicolau II, que governaram respectivamente a partir de 1881 e 1894, e cujas políticas repressivas acabaram suscitando as insurreições populares do século 20.

Cabe lembrar que o Brasil, na mesma época, não conseguiu realizar o grande projeto ferroviário e fluvial de integração nacional, lançado em 1874 pelo engenheiro André Rebouças, mas abandonado, e até hoje sofre com as consequências dessa falta de visão para a construção de uma rede diversificada de transportes.

A ciência, tanto na vertente das ciências naturais quanto das ciências humanas, tem estado bastante ausente das grandes discussões políticas brasileiras, bem como da arquitetura de um projeto nacional de desenvolvimento com base no pensamento científico. A dedicação de Mendeleiev à causa do Estado nacional é exemplar do papel social do cientista.

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