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Em 2015, a USP aprovou uma mudança histórica na seleção de alunos, com a adesão ao Sisu, um passo importante para aumentar a presença de estudantes negros na instituição a partir das vagas reservadas para ação afirmativa. Em 2017, a política de reserva de vagas se estendeu para o vestibular da Fuvest, com a proposta de que a USP chegue em 2021 com 50% de suas das vagas destinadas a alunos de escolas públicas – dentro deste número, incide um porcentual para pretos, pardos e indígenas, calculado de acordo com a proporção destes grupos no Estado de São Paulo.
Porém, enquanto a mudança já começa a ocorrer no corpo discente, outro setor fundamental da Universidade continua longe de atingir as mesmas metas: os professores. Segundo os dados mais recentes do Portal da Transparência da USP (com dados consolidados em outubro de 2018), dos 5.820 docentes ativos da Universidade, apenas 129 se autodeclaram pretos ou pardos. O número representa pouco mais de 2% do total.
Em novembro, quando é celebrado o Dia da Consciência Negra, o Jornal da USP conversou com três destes professores. Eles contam como chegaram à docência na que é considerada a melhor universidade da América Latina e o que esperam das transformações que vêm ocorrendo na Universidade em relação às políticas de inclusão.
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Maristela Oliveira dos Santos
Nascida em Itiquira, interior do Mato Grosso, a professora Maristela se interessou pelas ciências desde cedo, e diz que sempre teve incentivo para estudar. Aos 13 anos, começou o curso de eletrotécnica na Escola Técnica Federal do Mato Grosso, então a melhor escola da região. Logo depois, seguiu para a Universidade Federal de Mato Grosso, onde cursou matemática.
Foi nessa época que decidiu ser professora. “Comecei a focar minha formação para isso. Fiz curso de verão na Universidade de Brasília, participei do Congresso Nacional de Matemática Aplicada e Computacional (CNMAC) e dos colóquios do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA).” Em 1994, ela foi aceita para o mestrado no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP em São Carlos, onde também defendeu o doutorado. Como professora, começou em 2001 na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e após quatro anos foi para o ICMC, seu objetivo desde o início.
Apesar das dificuldades ao longo do percurso, Maristela afirma que a cor da pele nunca foi um impeditivo. “No meio acadêmico, especificamente na minha área, não vejo atitudes preconceituosas, porém não digo que não existem.” Mesmo assim, ela ressalta a importância de que existam mais docentes negros, tanto na universidade como em outros locais de ensino. “Ter professores negros incentiva os alunos a continuar e tentar ter uma carreira, melhorar a qualidade de vida por meio da educação. As crianças têm que ter referências, e professores negros e atuantes dentro das universidades, principalmente nas públicas, servem de exemplo para a população.”
Com reportagem de Talissa Fávero, da Assessoria de Comunicação do ICMC
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José Reinaldo Silva
“Eu não devo absolutamente nada à princesa Isabel, nem todos os descendentes de negros daquela época até hoje”, diz José Reinaldo, professor da Escola Politécnica (Poli) da USP há 29 anos. Ele refere-se ao processo de abolição da escravatura no Brasil, que não criou as bases necessárias para que a população negra ascendesse e passasse a ocupar os espaços de destaque socialmente.
José Reinaldo nasceu, cresceu e estudou na Bahia, sempre em escolas públicas. Tinha uma condição de vida razoável, até que seu pai, então comerciante de couro e sisal, faliu. Daí em diante, as dificuldades aumentaram, mas não impediram que ele entrasse no curso de Física da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1974.
Mais tarde, depois do mestrado, ele decidiu mudar de área. Passou um período estudando computação nos Estados Unidos e, de volta ao Brasil, cursou o doutorado na Poli. Foi então que, para sua surpresa, foi convidado a ser professor do curso de Engenharia Mecatrônica, em 1989.
Para o professor, apesar de positivas, as cotas raciais são medidas paliativas para um problema profundo e que levará anos para ser resolvido. “Um negro entra na universidade e todos os seus colegas são de uma classe social maior, e quase nenhum negro”, afirma, apontando essa diferença como uma outra dificuldade. “Dizer que as cotas resolvem tudo não é verdade. Começou ali a solução, mas tem muito chão pela frente.”
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Alessandro de Oliveira dos Santos
O Instituto de Psicologia (IP) da USP possui atualmente 78 docentes. De todos eles, Alessandro de Oliveira dos Santos é o único negro. Formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), começou a dar aulas na USP em 2010. Antes disso, passou por movimentos sociais e pelo poder público, trabalhando como educador na alfabetização de alunos presos e, depois, com a elaboração de políticas públicas para a prevenção do HIV.
Alessandro é um exemplo de como a presença da população negra nas universidades pode transformar a própria produção de conhecimento. Pouco depois de entrar na USP como docente, inaugurou no IP a disciplina Psicologia Social: Intercultura e Raça-Etnia, voltada para o estudo das relações étnico-raciais. “O IP sempre teve uma tradição muito forte de estudar as desigualdades de classe e de gênero, mas, para avançar na real compreensão da desigualdade no Brasil, precisava incluir as questões raciais”, explica.
O professor chama a atenção para o problema de a Universidade não ser representativa da população. “Todos mereceriam estudar nessa Universidade, mas não há espaço para todos. O que seria justo é que ela tivesse os vários segmentos da sociedade.” Para ele, a luta contra o racismo no Brasil ainda precisa passar por um letramento, uma percepção mais aprofundada sobre como ele se manifesta de maneiras específicas e através de uma série de contradições. “O Brasil é o único lugar em que as ações afirmativas são voltadas para a maioria da população, e não para a minoria. Já pensou nisso? Se houvesse ações afirmativas para valer, isso mudaria as relações de poder.”
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