Fotomontagem: Moisés Dorado

Congresso aprova projeto que pode liberar R$ 9 bilhões para a ciência em 2021

Projeto de lei que proíbe o contingenciamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) foi aprovado com ampla maioria na Câmara dos Deputados

18/12/2020
Por Herton Escobar

A ciência brasileira ajudou a salvar muitas vidas em 2020, e foi recompensada nesta quinta-feira (17/12) com uma vitória essencial para a sua própria sobrevivência. Deputados federais aprovaram por ampla maioria um projeto de lei que proíbe o contingenciamento de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). A decisão, se sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, tem potencial para desbloquear R$ 9 bilhões em investimentos em ciência e tecnologia no País — incluindo R$ 4,2 bilhões que foram represados no fundo neste ano, mais R$ 4,8 bilhões previstos como reserva de contingência no orçamento de 2021.

A liberação chega em boa hora para reverter o colapso orçamentário e afastar o risco de um apagão científico no Brasil, em função dos numerosos cortes aplicados ao setor nos últimos anos. O orçamento disponível para investimentos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) este ano é de apenas R$ 3,7 bilhões, e a proposta do governo para 2021 é reduzir ainda mais esse valor, para R$ 2,7 bilhões (mais informações no gráfico abaixo).

Criado em 1969, o FNDCT é um fundo de natureza contábil que recebe contribuições de diversas fontes para apoiar o desenvolvimento científico e tecnológico do País — equivalente ao Fundeb, na área da Educação. Deveria ser a principal fonte de recursos para a ciência no Brasil, mas a maior parte do dinheiro arrecadado nos últimos anos — cerca de R$ 25 bilhões entre 2006 e 2020, segundo dados da Finep, a empresa pública que gerencia e operacionaliza os recursos do fundo  — foi retida pelo governo federal e redirecionada para outras finalidades, como o pagamento de juros da dívida pública.

A arrecadação do fundo prevista para 2021 é de R$ 5,3 bilhões, que por lei deveriam ser integralmente aplicados em atividades de pesquisa científica e inovação tecnológica, mas o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) enviado ao Congresso pela equipe econômica do governo coloca 90% desse valor como reserva de contingência, indisponível para uso. Este ano, o contingenciamento foi de 87%. “Tal desvio de finalidade dos recursos do FNDCT não se justifica de nenhum modo uma vez que, pela legislação, deveriam ser destinados a atividades de pesquisa e desenvolvimento”, diz a Carta da Cidade de Natal, aprovada na última reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no final de novembro.

APAGÃO DE RECURSOS

Valores previstos no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para 2021, comparados ao orçamento deste ano

Obs.: Os porcentuais identificados “créditos suplementares” representam valores condicionados à disponibilidade de recursos e aprovação parlamentar para serem utilizados (Regra de Ouro)

Fonte: SBPC, com base em dados oficiais da LOA 2020 e PLOA 2021

O projeto de lei aprovado nesta quinta (PLP 135/2020), de autoria do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), põe fim a essa artimanha fiscal. Ele veda qualquer tipo de contingenciamento ou imposição de limites à execução do fundo e transforma o FNDCT em um fundo de natureza financeira (em vez de contábil), o que significa que os recursos que não forem utilizados em um determinado ano permanecem disponíveis para empenho no ano seguinte (em vez de serem recolhidos ao Tesouro, como acontece atualmente). Trata-se de uma demanda antiga da comunidade científica, mas que nunca havia prosperado no Congresso, até agora.

Além de blindar o FNDCT contra contingenciamentos futuros, o projeto resgata o que foi retido do fundo pelo governo neste ano, determinando que os recursos alocados em reserva de contingência no orçamento de 2020 sejam “integralmente disponibilizados ao fundo para execução orçamentária e financeira após a entrada em vigor desta Lei”. O presidente Bolsonaro tem agora 20 dias para sancionar (ou vetar) a nova lei. O ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, divulgou um vídeo na noite de ontem comemorando a votação como “um dia histórico” para o Brasil e agradecendo aos vários atores que contribuíram para o resultado.

O projeto foi aprovado com 385 votos a favor, 18 contra e 2 abstenções, graças a um grande esforço de articulação capitaneado por entidades científicas, em colaboração com o MCTI e parlamentares. “Acho que este resultado foi possível pela consciência social de que ciência e tecnologia são fundamentais, e que os cortes de recursos são um tiro no pé para o Brasil”, disse ao Jornal da USP o presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira. “A comunidade científica e tecnológica atuou com muita intensidade junto ao Legislativo nos últimos dois anos; e há muitos parlamentares sensíveis a esta causa, de diferentes partidos. Tudo isso contribui para esta vitória expressiva, que ainda precisa ser consolidada.”

Orçamento dos principais fundos de apoio à pesquisa científica e tecnológica

(FNDCT, CNPq e CAPES): 2000 a 2020

Fonte: IPEA

“Foi uma data histórica para a ciência e a inovação no Brasil. Uma vitória conquistada graças a uma ação conjunta e alinhada da comunidade científica, da indústria inovadora, do MCTI”, comemorou, também, o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich. “Foi um grande momento do Parlamento nacional, que em uma ação suprapartidária manifestou uma visão de futuro, muito além das disputas cotidianas.”

“O retorno desses recursos para a pesquisa científica e tecnológica é fundamental. O Brasil paga um preço enorme, muitas vezes em vidas, pela regressão do financiamento da nossa ciência”, avaliou Glauco Arbix, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e ex-presidente da Finep. O dinheiro pode ser usado de diversas formas (reembolsáveis e não reembolsáveis), por meio de chamadas públicas, cartas-convite e encomendas tecnológicas feitas a universidades, empresas e outras instituições de pesquisa.  

“A pressão tem de continuar para garantir que os recursos sejam alocados de forma racional”, diz o cientista Hernan Chaimovich, professor emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entidade que também utiliza recursos do FNDCT para lançar editais e apoiar atividades de pesquisa. “Racionalmente, a decisão mais urgente seria recompor de alguma forma o orçamento do CNPq e pagar os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (cujo financiamento foi interrompido nos últimos anos pelos cortes orçamentários e contingenciamentos do FNDCT). Estas ações impediriam que o desmonte corrente da pesquisa no Brasil se completasse.”

Futuro incerto

Sem os recursos do FNDCT, o cenário para a ciência brasileira em 2021 é potencialmente desastroso. 

O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do governo prevê um corte de mais de 20% no já diminuto orçamento geral do MCTI, incluindo uma redução de 34% nas chamadas verbas discricionárias — que são os recursos efetivamente disponíveis para investimento em bolsas, infraestrutura e projetos de pesquisa. Para piorar a situação, quase metade (49%) desses recursos está atrelada à chamada Regra de Ouro, o que significa que sua disponibilidade depende da liberação de créditos suplementares pelo Congresso no decorrer do ano. Ou seja, é um dinheiro que poderá ou não estar disponível, dependendo da situação econômica e política do País.

A desidratação do orçamento do MCTI tem um efeito cascata sobre todo o sistema de ciência e tecnologia do País. O orçamento de fomento do CNPq previsto para 2021 é de apenas R$ 22,5 milhões (comparado a R$ 127 milhões em 2019), e mais de 60% dos recursos para bolsas estão condicionados à Regra de Ouro, segundo dados compilados pela SBPC.

“A redução continuada de recursos para ciência, tecnologia e inovação terá consequências graves não apenas no funcionamento das instituições de pesquisa e universidades, no sucateamento de laboratórios e no êxodo de pesquisadores, mas produzirá impactos negativos na sociedade, na indústria, na economia, na saúde e na qualidade de vida dos brasileiros”, diz uma carta enviada a parlamentares em outubro, assinada por mais de 90 entidades científicas, que detalha os valores do PLOA 2021.


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