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Ilustração: Carmen Santana
Pessoas em situação de rua e Universidades se unem em projeto social
“A Cor da Rua” alia extensão e capacitação na USP e na Unifesp; iniciativa reúne estudantes, profissionais e a própria população de rua para promover saúde mental e educação em direitos
28/08/2020
Tabita Said
Atender pessoas em situação de rua é um desafio completo para os profissionais de saúde. Embora a medicina viva a era da especialização, sequer há um consenso entre os profissionais sobre o problema ser de saúde ou social. E a desarticulação entre os serviços da rede de assistência social e da saúde agrava a situação. Além da falta de acesso à moradia, alimentação e de tratamento para doenças físicas, o abuso de drogas e álcool e fatores ambientais são determinantes para o desenvolvimento de transtornos mentais.
“Para todas as pessoas em situação de rua falta porta de saída, em um projeto individual. Mas no coletivo, todos, todos precisam de psiquiatria”, declara Roseli Barbosa. Índia, como é conhecida entre os colegas, chegou a viver nas ruas de São Paulo grávida e com uma das quatro filhas recém operada, após problemas financeiros.
Morando em uma ocupação, Índia integra o projeto “A Cor da Rua”, que reúne estudantes, profissionais de diversas áreas e a própria população de rua para promover ações de direitos humanos aplicados à saúde pública.
Trabalhando “com” e não “para” a população de rua, projeto se apoia em conceitos dos Direitos Humanos para a saúde pública. Foto: Índia, Lora e Alexandre - Foto: Arquivo Pessoal
Como o projeto surgiu?
O projeto aproveita a parceria entre USP e Unifesp nos programas de estágio em enfermagem e residência médica multiprofissional para formar estudantes fora do contexto clínico. “Não é fácil chegar na rua, porque tem toda uma construção de atendimentos. E uma das coisas que o Sistema Único de Saúde espera da Academia é que se forme profissionais com esse olhar”, conta o enfermeiro José Gilberto Prates, um dos coordenadores da iniciativa e do curso de especialização em Saúde Mental e Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Para ele, somente a graduação não é capaz de preparar o profissional para ocupar as diferentes áreas da rede de assistência à saúde mental. Na residência multiprofissional, o estudante trabalha diretamente nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), Unidades Básicas de Saúde (UBSs), Pronto Socorros (PSs) e Consultórios de Rua, e é estimulado a desenvolver ações de integração na rede de saúde, como um todo.
Invisibilidade Social
A população em situação de rua é considerada um grupo de extrema vulnerabilidade social. Para viabilizar a efetivação dos direitos humanos a essas pessoas, o projeto apostou na formação da própria população de rua nesse tema, além de aliar o conceito de multiplicadores. Atualmente, o coletivo conta com 40 membros, entre eles agentes comunitários trabalhando nos consultórios de rua em São Paulo. “A nossa perspectiva da saúde mental é a perspectiva da saúde total. Isso se caracteriza pela intersetorialidade e a participação social. Quando a gente fala de Saúde e Direitos Humanos, a gente tá falando que a saúde é responsabilidade de vários setores, em uma rede que envolve assistência social, cultura, educação, trabalho, moradia. Nós estamos na interface da saúde individual com a coletiva”, define Carmen Lúcia Albuquerque de Santana, coordenadora do projeto.
Seu envolvimento e dedicação se traduzem na intimidade que conquistou com as pessoas em situação de rua. “São dois anos convivendo com a Carmen e eu nunca a vi surtar por nada!”, conta Lora Matoso, que viveu na rua por mais de 20 anos e diz que durante todo esse tempo ela jamais foi enxergada pelo poder público. Importante liderança local na luta por direitos, Lora mantém um bazar no centro de São Paulo e frequenta assiduamente as plenárias do Conselho Municipal de Assistência Social. “Mesmo sendo suplente dentro dos Direitos Humanos, nunca fomos instruídos a participar. O projeto é tão fortalecedor que eu acredito que se toda a população de rua pudesse ter acesso, ela não seria tão invisível”.
Segundo ela, a sociedade deveria se preocupar com as pessoas nessa situação, mas não faz ideia das dificuldades enfrentadas, mesmo nos centros temporários de acolhimento, para conseguir, por exemplo, um copo d’água. “E eu não estou falando da Universidade só. Estou falando do cidadão. Nós estamos vivendo Auschwitz, essa é a realidade”.
Foto: Lora Matoso - Foto: Reprodução/Facebook
Amigo de Lora na rua e na luta, Alexandre Frederico foi cozinheiro de um hotel de alto nível em São Paulo, mas acabou nas ruas após perder seu companheiro para o câncer e se descobrir soropositivo. Depois de treze anos vivendo no looping “rua – albergue – pensão”, Alexandre passou a se interessar pelas políticas voltadas à população de rua e a fazer suas próprias denúncias. “Não me dei bem na maioria dos movimentos organizados, porque quase todos eram partidários. Até que um dos meus colegas de coletivo me disse que eu precisava conhecer o projeto de uma das autoras do livro ‘Saúde Mental das Pessoas em Situação de Rua e esse livro mudou a minha vida”, conta Alexandre que viu no projeto uma porta de saída efetiva. “Eu não teria perdido 13 anos da minha vida se eu tivesse encontrado alguém que me perguntasse: ‘mas espera aí, o que você sabe fazer?’. E não é dar um emprego, é levar a sério o projeto individual de assistência que todo albergue já tem”.
Como o projeto atua?
Ensino
Estudantes, residentes e profissionais da área da saúde da USP e da Unifesp recebem formação e treinamento no atendimento feito diretamente na rua. O foco é na Psiquiatria Social, na qual são considerados determinantes sociais, com intervenções que utilizam a cultura, a arte e os direitos humanos. Em parceria com a Escola Politécnica da USP, o projeto está desenvolvendo uma plataforma de ensino à distância para formação e capacitação de novos profissionais, inserindo o tema da saúde mental nos espaços pedagógicos.
Pesquisa
Utilizando a metodologia da Pesquisa-ação, o projeto criou uma rede colaborativa de pesquisa, incluindo: Defensoria Pública, Ministério Público, trabalhadores da saúde e assistência, residentes do Instituto de Psiquiatria da USP, lideranças das Pessoas em Situação de Rua e ONG Apoio (responsável pelo complexo Boraceia - conjunto de centros de acolhida por onde circulam cerca de 1.500 pessoas por dia). A rede, chamada de “Ambulatório A Cor da Rua”, também envolve o Centro de Pesquisa Participativa da Universidade do Novo México, nos EUA.
Extensão
Ponte entre o saber científico e o saber da vivência cotidiana, além do reconhecimento dos profissionais formais e informais atuando na Rede de Atenção Psicossocial. Um exemplo está na parceria com o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, que coordena 25 das 26 equipes de consultório na rua. Os agentes de saúde dessas equipes vieram da situação de rua e trabalham junto a médicos, enfermeiros, assistentes sociais, agentes sociais e psicólogos. Muitos destes profissionais são estudantes ou egressos da USP e da Unifesp.
População de rua e a pandemia
Ficar em casa em tempos de pandemia se tornou uma exigência necessária para atenuar a circulação do coronavírus. Distanciamento social e medidas de higiene são as recomendações oficiais da Organização Mundial da Saúde, até que uma boa parcela da população esteja imunizada pela vacina. No entanto, no mês em que se celebra o Dia Nacional da Habitação, mais de 24 mil pessoas vivem sem acesso à moradia na cidade de São Paulo, de acordo com o Censo da População em Situação de Rua divulgado em fevereiro pela prefeitura. O número corresponde a um aumento de 53% desde o último levantamento, feito em 2015.
Em âmbito nacional, estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostraram que, em março de 2020, havia cerca de 222 mil pessoas em situação de rua; 76 mil pessoas a mais do que as registradas no Cadastro Único de programas sociais do governo federal em fevereiro do mesmo ano. O Instituto apontou ainda uma tendência de aumento por consequência da crise econômica acentuada pela pandemia, que gerou desemprego e ampliou as ações de remoção em ocupações.
Foto: Wikimedia Commons
Problema de quem?
“O problema é nosso”, enfatiza Carmen. “Todo mundo tem que assumir sua parcela de responsabilidade para ver a mudança”. A psiquiatra explica que, mesmo com a pandemia, o grupo não ficou estagnado. Além de realizarem campanhas para doações de água, alimentos e dinheiro, o projeto criou cartilhas de orientação para medidas de isolamento dentro dos centros de acolhida e uma rede para informar casos de violação de direitos. Integrantes da rede fazem frente junto à Defensoria Pública, que já moveu algumas ações coletivas.
Até o mês passado, o projeto continuava com as intervenções à distância, utilizando telefones de lideranças e de profissionais da assistência social para realizar atendimentos. Uma das tônicas do projeto, o matriciamento (estratégia de divisão em saúde) das pessoas atendidas também foi feito, “para dar uma alta com responsabilidade”, explica Gilberto se referindo aos moradores de rua que chegam ao hospital por algum acidente ou problema físico, mas que não conseguem uma interconsulta. “E essa tramitação pode construir um novo rumo na vida dessas pessoas”. Neste momento, o projeto está voltando às atividades presenciais na Praça da Sé e no Complexo Boraceia.
“Minha luta na rua continua, porque foi lá que eu aprendi a amar o ser humano. Mas o medo de voltar para a rua é um fantasma”, admite Índia. Ela acredita que a oportunidade de virada venha da saúde mental . “Nesse frio, na chuva, são muitas pessoas se machucando, adoecendo, negando ajuda por problemas psiquiátricos. O SAMU até leva para o PS, mas não tem ninguém para ir buscar. Então ele volta pra Praça da Sé onde não tem como tomar banho ou se tratar”.