Revisão da Lei de Cotas amplia ações de inclusão nas universidades

Projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados traz novidades semelhantes às ações afirmativas implementadas no último vestibular da USP

 17/08/2023 - Publicado há 8 meses

Texto: Silvana Salles
Arte: Carolina Borin*

Sessão Deliberativa na Câmara em que os deputados federais aprovaram projeto em agosto de 2023 - Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

As alterações à Lei de Cotas aprovadas pela Câmara dos Deputados foram avaliadas de forma positiva por pessoas que vêm acompanhando o tema das ações afirmativas de perto. Na semana passada, os deputados federais aprovaram o projeto de lei 5.384/2020, que faz ajustes à Lei 12.711/2012 – lei que tornou obrigatória a reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas nas universidades federais. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, ela própria uma beneficiária do sistema de cotas quando foi estudante da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), acompanhou presencialmente a sessão plenária da Câmara.

Originalmente proposto pela deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) e outros autores, o projeto de lei 5.384/2020 foi aprovado com o texto do substitutivo da relatora, a deputada Dandara (PT-MG). Pela proposta aprovada, o programa de ações afirmativas das instituições federais de ensino superior e técnico terá ajustes nas regras do vestibular, priorizará os cotistas na concessão de bolsas e incluirá estudantes quilombolas como beneficiários das cotas. Para se tornar lei, o projeto ainda precisa passar pela discussão no Senado, antes de seguir para sanção presidencial.

Para entender melhor o que o texto aprovado na Câmara traz de avanços, o Jornal da USP conversou com a professora Ana Lanna, pró-reitora de Inclusão e Pertencimento da USP; com Amanda Medina, estudante da Faculdade de Direito (FD) da USP e integrante da Coligação dos Coletivos Negros da USP; e com Bárbara Barboza, mestre em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e integrante da Coletiva Gira.

Vale lembrar que a Lei de Cotas das federais não se aplica à USP, que segue uma resolução própria. No entanto, os principais ajustes aprovados pelos deputados são similares a medidas que começaram a ser implementadas na USP em 2023. Isso mostra que as universidades públicas brasileiras têm se movimentado de forma coesa na direção da inclusão e do combate às desigualdades.

“Eu achei que foi muito importante o processo. Foi significativo reafirmar a importância das cotas no momento em que a gente sabe que elas realmente fazem uma mudança no perfil do nosso alunado, mas não afetam a qualidade de seus desempenhos. A gente já tem também bastante estudo, bastante conhecimento mostrando que esses estudantes muito rapidamente recompõem a diferença inicial de nota de corte quando ela existe. Achei que foi um ganho muito importante para a gente construir uma sociedade mais inclusiva e mais democrática”, opina a pró-reitora Ana Lanna.

Ana Lúcia Duarte Lanna - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Cotas passam a ser piso, e não teto de inclusão

Ana Lanna e Amanda Medina destacam, como principal avanço no projeto de lei 5.384/2020, a alteração na aplicação das cotas, que ocorrerá somente após serem preenchidas todas as vagas de ampla concorrência, independentemente dos candidatos aprovados terem optado ou não pela política afirmativa. Com isso, as cotas passam a funcionar como um piso de inclusão.

“Uma mudança importante da lei é a questão do vestibular. Se o candidato a cotas tem a nota suficiente para entrar ou por ampla concorrência ou por escola pública, ele não ocupa a vaga de cotas [étnico-raciais]. Isso foi uma mudança que [na USP] era uma demanda do movimento estudantil e foi implementada no vestibular agora, de 2023, e com resultados bastante significativos”, comenta Ana Lanna.

Segundo a docente, a alteração na aplicação das cotas no vestibular da USP resultou no ingresso de centenas a mais de estudantes indígenas, em comparação com anos anteriores.

“A gente entendia que as cotas não podiam ser um teto, e sim (que) elas tinham que ser um piso de representatividade. Antes, as pessoas que queriam concorrer em cotas ficavam restritas a essas cotas. Mas agora, se elas tiverem nota suficiente, elas vão para ampla (concorrência). Isso faz com que as pessoas PPI (pretas, pardas e indígenas) ou EP (escola pública) que tiverem notas menores, que não conseguiriam concorrer em ampla, fiquem aí nessas políticas, mesmo. Então, vai ter uma maior quantidade de pessoas de escola pública, negras, essa mudança faz isso”, diz Amanda Medina. “Para a gente foi bem importante ver essa mudança das federais”, completa a estudante.

Amanda Medina - Foto: Arquivo Pessoal

Para Bárbara Barboza, o panorama das universidades brasileiras, após uma década da Lei de Cotas, é um cenário muito mais diverso e muito mais preto. “Isso tem dado mais potência aos saberes que o Brasil desenvolve. Significa que estudantes negros fazem muita diferença quando acessam a universidade e fazem muito mais diferença quando conseguem permanecer e ver a universidade como repertório dentro do seu projeto de vida”, afirma a cientista política, que foi beneficiária das cotas de seu programa de pós-graduação no mestrado.

Discussão e votação de propostas durante a Sessão Deliberativa na Câmara dos Deputados Federais aprovaram projeto em agosto de 2023 - Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Renda, sobrevivência e permanência estudantil

Outro ajuste importante diz respeito à renda dos candidatos ao vestibular. A Lei 12.711/2012 prevê que metade das vagas reservadas deve ser destinada a estudantes com renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo. A proposta aprovada passa a beneficiar os estudantes com renda familiar per capita de até um salário mínimo, reforçando o foco no atendimento da população mais pobre.

“Por uma questão de precariedade de vida, de sobrevivência, muitos estudantes acabaram abandonando a ideia de se formarem ou de continuarem na universidade, tanto na pós-graduação quanto na graduação também. Esses estudantes precisaram trabalhar. A gente está falando de trabalho inclusive precário, terceirizado, sobretudo as mulheres na universidade, pessoas com filhos. Essas pessoas foram as que mais se evadiram da universidade nos últimos anos”, relata Bárbara. “Então, diminuir a renda per capita de um salário e meio para um salário mínimo faz com que mais estudantes possam acessar a universidade, de acordo, agora, com esse novo cenário de empobrecimento da população brasileira”, avalia.
Bárbara Barboza - Foto: Arquivo Pessoal

Bárbara Barboza - Foto: Arquivo Pessoal

Nesse sentido, a prioridade dos cotistas na concessão de bolsas é vista como um avanço relevante. “A prioridade para que cotistas sejam bolsistas é uma luta dos movimentos negros e dos movimentos estudantis desde que as cotas existem. Porque, para que os cotistas tenham sucesso, é importante que eles tenham condições de permanecer na universidade, e condições significam políticas integradas de permanência. Uma delas é a bolsa. Mas também auxílio-moradia, o bandejão, auxílio-alimentação, a questão da creche”, diz a cientista política.

Manifestação a favor da permanência no campus Butantã da USP em maio de 2022 - Foto: Facebook/DCE Livre da USP

Outros pontos destacados pelas fontes ouvidas pelo Jornal da USP foram a inclusão da reserva de vagas para quilombolas, que encontram mais dificuldades para acessar a universidade pelas cotas PPI, e a previsão de que os programas de pós-graduação também implementem ações afirmativas nos cursos de mestrado e doutorado. Caso aprovada pelo Senado, a nova lei deverá ser revista daqui a dez anos. Nesse meio tempo, o Ministério da Educação (MEC) será responsável por publicar relatórios de acompanhamento anuais. Outros ministérios também deverão acompanhar o programa.

Na avaliação da pró-reitora de Inclusão e Pertencimento da USP, dez anos é um prazo razoável para uma nova revisão, pois possibilita observar os dados de dois ciclos de formação na graduação. “Os cursos de graduação são em torno de cinco anos. Então, dá realmente para você fazer uma análise, entender não só ingresso, como desempenho e empregabilidade”, diz a professora Ana.

Banca de heteroidentificação ficou de fora da revisão

“Quando a Coligação de Coletivos Negros surgiu, que foi em abril de 2021, surgiu justamente reivindicando que tivesse a banca de heteroidentificação e que tivesse a alteração nas regras de reservas de vaga”, conta Amanda, sobre a articulação dos estudantes da USP. As bancas de heteroidentificação têm por objetivo evitar fraudes nas cotas étnico-raciais.

Implementadas na USP a partir de 2023, elas já existem em outras universidades há mais tempo – a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), por exemplo, segue um procedimento de heteroidentificação ou de aferição da pessoa com deficiência descrito em uma resolução em 2018. Há uma demanda do movimento negro e do movimento estudantil para o estabelecimento de diretrizes baseadas em letramento racial, para subidiar as decisões das bancas de heteroidentificação.

Manifestação em outubro de 2012 de estudantes no Senado Federal a favor da aprovação das cotas raciais - Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Contudo, para garantir a aprovação do projeto de lei 5.384/2020, a relatora Dandara deixou esse ponto de fora do texto final. A articulação de Dandara foi bem-sucedida, tanto é que o projeto foi aprovado em votação simbólica, com algumas declarações de voto isoladas de deputados da oposição. Bárbara acredita que, graças à articulação de Dandara, a tramitação do projeto de lei no Senado dificilmente trará surpresas. Alguns desafios, porém, terão de ser enfrentados na próxima revisão do programa de ações afirmativas.

“É excelente que o Brasil esteja agora amadurecendo o debate sobre a identidade racial, sobre as relações raciais. O Brasil está com uma cara cada vez mais negra, cada vez mais indígena. No entanto, isso traz alguns desafios em todos os cenários onde a gente fala sobre raça. No cenário político, no cenário universitário”, comenta a cientista política. “Ainda é um desafio a comissão de heteroidentificação”, conclui.


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