Por que existem tão poucas técnicas mulheres no voleibol de alto rendimento?

Pesquisa da USP comparou o encaminhamento de pós-atletas olímpicos homens para o mais alto cargo do esporte, enquanto mulheres enfrentavam barreiras invisíveis, mesmo tendo prestígio como jogadoras

 Publicado: 18/04/2024

Texto: Maria Trombini*

Arte: Joyce Tenório**

Dissertação de mestrado produzida na Faculdade de Educação discute a presença feminina em cargos de liderança no voleibol - Foto: Reprodução/Freepik

Na temporada 2023/24 da Superliga Brasileira de Voleibol, nenhuma mulher ocupa o cargo de treinadora. Nas últimas dez edições da competição, apenas três mulheres estiveram à frente de uma das 24 equipes (masculinas e femininas somadas) da elite do vôlei: Sandra Mara Leão comandou o Araraquara na temporada 2013/14 e Helga Sasso assumiu a liderança do Curitiba no final de 2021, quando Kely Kolasco abriu mão da posição de treinadora por não conseguir conciliar a agenda de jogos com a maternidade solo.

Essa ausência de figuras femininas nas comissões técnicas de equipes de alto rendimento virou objeto de estudo na dissertação de mestrado de Julio Cezar Fetter, pesquisador na Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Fetter é graduado pela Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) e membro do Grupo de Estudos Olímpicos da USP desde 2004.

Inicialmente, o mestrado de Fetter se dedicava a estudar as especificidades da posição de líbero no voleibol – uma função defensiva, geralmente ocupada por jogadores mais baixos. Ele conta que o novo tema de pesquisa chegou a ele por meio de sua orientadora, a professora Katia Rubio. À época, Katia mantinha contato próximo com a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), pesquisando sobre o processo de transição de carreira de pós-atletas olímpicos. Julia Silva, esposa da bicampeã de vôlei Fabi Alvim e gerente de seleções da CBV, foi a responsável por questionar a pesquisadora. “Ela viu que era muito comum que os homens parassem de jogar e virassem membros das comissões técnicas, o que não acontece com as mulheres. Aí veio a pergunta: o que acontece para que elas não continuem?”, relembra Kátia.

Katia Rubio - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Katia Rubio - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A proposta foi prontamente aceita por Fetter, que já contava com publicações sobre o tema. “Ainda durante a graduação, eu já tinha pesquisado muito sobre a questão de gênero. Escrevi um trabalho sobre treinadoras, de uma forma geral. É um tema que me encanta muito mais”, comenta.

Narrativas biográficas

O método de pesquisa e reflexão escolhido para a dissertação de Fetter foi o das narrativas biográficas. A análise do objeto de estudo é feita a partir da coleta de relatos, aliada à teoria daquele campo do conhecimento. “A metodologia das narrativas biográficas é um trabalho que a Kátia tem e que me faz muito sentido. Não é um olhar externo, de alguém que vai chegar e determinar qual é a realidade de vida”, diz.

Segundo o trabalho elaborado e proposto pela professora, os relatos não são apenas mera reprodução das experiências vividas, mas uma manifestação de construção social e individual. Eles compõem um estudo de contexto que, legitimado pelas personagens, possibilita compreender as conjunturas e os processos vividos. “Quando você coloca a narrativa de alguém que viveu aquela realidade, o debate fica muito mais rico, porque vem de alguém que sentiu na pele aquelas dores, sensações, emoções, e que estava fazendo as mesmas perguntas que nós”.

"A voz dessas atletas foi fundamental para essa dissertação. Ouvi-las, de uma forma aberta e franca, foi muito importante para explorar a questão. Se tivéssemos feito a partir de uma visão externa, com uma análise mais quantitativa e historiográfica, não teríamos a riqueza dos dados que conseguimos coletar. A voz delas trouxe um significado outro para a pesquisa”.

Julio Cezar Fetter - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Julio Cezar Fetter - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Três pós-atletas olímpicas foram entrevistadas: Jackie Silva, Erika Coimbra e Fabiana Alvim. Os relatos delas foram contextualizados entre os diferentes momentos da história do vôlei, de acordo com a periodização olímpica proposta pela professora Katia Rubio. A partir disso, Fetter buscou entender quais aspectos da estrutura da modalidade constituem o que ele define como uma barreira invisível, que faz com que a carreira de técnica não seja um caminho possível para as mulheres no voleibol.

O pesquisador conta que as pós-atletas foram escolhidas e convidadas especificamente: “Buscamos pensar em mulheres que foram importantes e cujas questões de gênero de alguma forma atravessaram suas vivências. Por isso a escolha das três. Elas eram figuras técnica e taticamente relevantes para suas equipes, e tiveram esse atravessamento na jornada delas simplesmente por serem mulheres”.

Pós-atleta

O termo “pós-atleta” é utilizado pela professora Katia Rubio, pois, segundo ela, os anos dedicados ao esporte de alto rendimento provocam no atleta uma marca que é intrínseca à sua identidade. “Para chegar às Olimpíadas, um esportista teve que treinar de 8 a 12 mil horas durante um momento muito específico da vida, que é a juventude. É justamente nessa faixa etária que aquilo que chamamos de personalidade está se estruturando. É evidente que a pessoa, quando madura, vai ter uma relação com essa identidade de muito vínculo”.

Há 20 anos, Kátia desenvolve um trabalho de pesquisa sobre o processo de transição de carreira de atletas olímpicos. “Eu entrevistei mais de 1.500 atletas olímpicos. Aqueles que já saíram da vida competitiva e tem cerca de 50 a 60 anos fazem o relato de algumas coisas como se ainda fosse no tempo presente. Eu posso afirmar que a identidade do atleta está viva nessa pessoa, mesmo que ele já não compita mais”.

“Para mim, o termo específico para se referir ao momento depois da fase competitiva é pós-atleta, porque a identidade de atleta está marcada nele como uma tatuagem. Ele pode lavar o quanto quiser, ela não vai sair”

Sandra Pires e Jackie Silva nas Olimpíadas de 1996 - Foto: Arquivo pessoal
Jackie Silva em foto mais recente - Foto: @jackievolley/Instagram

Jacqueline Silva

Jacqueline Louise Silva Cruz, conhecida como Jackie, foi a primeira brasileira campeã olímpica. Nos Jogos Olímpicos de Atlanta de 1996, ano de estreia da modalidade do vôlei de praia, ela e Sandra Pires foram as primeiras brasileiras a conquistarem uma medalha de ouro.

Vivendo na fase de transição do amadorismo para a profissionalização da carreira de atleta, Jackie foi voz ativa na luta pela igualdade de oportunidades no esporte para homens e mulheres.

“Em determinado momento, há uma mudança de visão dentro do Movimento Olímpico: ele não vai se sustentar se continuar com o discurso de que todo atleta tem que ser amador e fazer aquilo por amor ao esporte. Essa mudança traz para as modalidades, incluindo o voleibol, uma profissionalização, uma busca por mais visibilidade e dinheiro. Passa a existir uma outra construção do formato e do sistema esportivo”, explica Fetter.

É nesse contexto que Jackie narra um dos maiores conflitos de sua trajetória como atleta. Em 1986, quando ainda jogava vôlei de quadra, Jackie decidiu ir ao treino da seleção com o uniforme vestido do avesso. A atitude foi um protesto contra a distribuição desigual entre os times masculino e feminino da verba publicitária recebida dos patrocinadores que estampam os trajes dos atletas. “E aí casam as narrativas. Estamos discutindo profissionalização, mas para quem? Com quais condições? Serão as mesmas para os homens e as mulheres? Não”, diz Fetter

Logo depois do ocorrido, Jackie foi cortada da seleção. Ela conta que a argumentação usada para respondê-la sobre a diferença entre os recursos para os dois naipes era que o time masculino tinha resultados e o feminino, não. Entretanto, o pesquisador afirma: “Isso não é verdade. O que aconteceu é que o masculino sempre foi campeão sul-americano e o voleibol feminino alternou períodos com a seleção do Peru, que também sempre foi muito forte. Até 1980, nenhum dos dois tinha títulos de grande importância”.

“A seleção masculina possuía uma estrutura profissional à sua disposição, enquanto a seleção feminina ainda vivia o amadorismo naquilo que a instituição lhe ofertava”

Erika Coimbra jogando pelo Atom Trefl Sopot da Polônia em 2013 - Foto: Grzegorz Jereczek/Wikimedia Commons
Erika Coimbra em foto mais recente - Foto: @erikacoimbra/Instagram

Erika Coimbra

Erika Kelly Pereira Coimbra foi campeã mundial de vôlei juvenil e medalhista de bronze na edição dos Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000.

A trajetória de Érika no esporte foi marcada por diversas violações ao seu poder de escolha. Aos 17 anos, durante o Campeonato Mundial Juvenil, ela e as demais atletas mulheres presentes na competição foram submetidas a um teste de verificação de gênero. Às vésperas das quartas de final do Mundial, ela foi impedida de entrar em quadra.

Foi apenas ao retornar ao Brasil que Erika descobriu o motivo de sua retirada do torneio, que já circulava na imprensa mundial: ela não havia passado no teste. Enviada à França para realizar outros diversos exames, Erika descobriu que era portadora da Síndrome de Insensibilidade a Andrógenos. Também conhecida como Síndrome de Morris, a condição ocorre devido a uma alteração genética ligada ao cromossomo X, que provoca perda total ou parcial da capacidade das células em responder a andrógenos (hormônios responsáveis por desenvolver as características sexuais masculinas).

“A Erika passa por um controle muito cruel com o corpo dela. Ela é obrigada a passar por um teste que não era imposto aos homens. A partir disso, a carreira e a vida dela são transformadas de uma maneira abrupta. Quando ela volta do período de cirurgia e tratamento, é feita uma consulta para aprovar a volta dela aos campeonatos. Mas, espera aí, quem são as pessoas tomando essa decisão?”, questiona Fetter.

O pesquisador também comenta sobre a influência que a mídia teve durante e depois desse episódio na vida da pós-atleta. “O direito dela à privacidade nunca foi respeitado. Tudo sobre ela sempre saía nos jornais”, lembra. De acordo com ele, a mídia esportiva pretendia ditar o lugar onde a mulher caberia ou não no esporte. “As reportagens, até os anos 2000, se dedicaram a discutir atributos que não a prática do vôlei em si. Para as mulheres, são sempre impostas essas questões: tarefas domésticas, filhos, beleza, autocuidado, vaidade e etc”.

Erika acabou se apropriando da narrativa de musa colocada sobre as jogadoras de vôlei para contornar as questões de gênero vividas na juventude. “As mulheres no vôlei são comumente colocadas nesse lugar de ‘menina bonita que joga vôlei’. A Erika toma isso para si para poder continuar ocupando um espaço, o único que era permitido a ela”, analisa Fetter.

Fabi Claudino, Fabi Alvim e Sheilla Castro nas Olimpíadas de 2012 - Foto: @fabialvim/Instagram
Fabi Alvim em foto mais recente - Foto: @fabialvim/Instagram

Fabi Alvim

Fabiana Alvim de Oliveira é uma pós-atleta bicampeã olímpica de vôlei. Como líbero, conquistou a medalha de ouro junto às colegas de seleção nas edições de Pequim 2008 e Londres 2012.

Fabiana foi a primeira a ser entrevistada. “Foi meio que o projeto piloto: vamos entrevistar a Fabi e ver qual é o caminho. A partir dali, pensamos nas outras entrevistadas. Foi uma entrevista de duas horas, que eu demorei seis meses para transcrever, porque ela fala muito rápido e era muita coisa. Ela se abriu de uma forma muito bonita e franca”, relembra Fetter.

O pesquisador comenta que o fato de Fabiana não ter seguido a carreira de técnica sempre o intrigou. Durante seus anos em quadra, ela sempre foi uma figura de liderança. Além de ser uma ótima jogadora, também entendia muito sobre as táticas do esporte. “Então, por que ela nunca recebeu um convite?”

“Foi uma surpresa para mim perceber que muitas atletas não se viam nesse lugar de afastamento. A Fabi, que tem um discurso muito potente em várias questões, como na luta pelos direitos da comunidade LGBTQIA +, foi alguém que nunca se questionou, efetivamente. Ela me disse: ‘É, eu nunca tinha pensado nisso. Nunca tinha me dado conta que a oportunidade não foi oferecida a mim’. Eu imaginava que ela seria alguém que expressaria vontade e revolta de uma forma mais veemente”.

Ainda que já fosse um dos grandes nomes do voleibol brasileiro, Fabi não foi a Atenas disputar os Jogos Olímpicos de 2004. Tendo perdido a vaga para Arlene Xavier, ela acompanhou fora das quadras um dos episódios mais marcantes da seleção feminina: a virada histórica da Rússia contra o Brasil na semifinal.

O primeiro ciclo olímpico completo vivido pela atleta começou na convocação seguinte. Em 2006, as russas novamente foram as carrascas da seleção na disputa pelo título mundial. Fabi relata que a mais dolorosa derrota foi contra Cuba, na final dos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, em 2007.

A partir disso, fortificou-se uma narrativa de que as atletas da época compunham uma equipe forte, mas que não possuía a força psicológica necessária para serem campeãs. “O discurso passa a ser sobre a fragilidade feminina. Elas são boas, mas são instáveis. Quando as mulheres perdem, é claramente um sinal de instabilidade emocional. Os homens perderem é fruto de um mérito muito grande das equipes adversárias. Com eles, discute-se o jogo. Com elas, discute-se a condição de ser mulher”, constata Fetter.

Barreiras invisíveis

O pesquisador Julio Fetter diz que, pela pesquisa realizada, é possível apontar que faltam mulheres treinadoras no voleibol porque existe uma estrutura esportiva opressora. “É um espaço criado para afastar as mulheres”, diz.

Para ele, existe uma fraternidade masculina que encaminha como natural o fato de os atletas homens pensarem em seguir carreira como treinadores, enquanto as atletas mulheres precisam enfrentar uma barreira, porque essa não é a realidade delas.

Fetter menciona o pioneirismo de Isabel Salgado, primeira mulher a ocupar o cargo de técnica na Superliga e para quem a dissertação é dedicada. “Uma só mulher não basta. Nós tivemos, por exemplo, a Isabel, que foi vice-campeã da Superliga. Isso não foi o suficiente para validar esse lugar como possível para as mulheres. A Isabel é uma intrusa e, a partir do momento em que ela não está mais lá, não tem porque outra ocupar aquele mesmo espaço”.

“Essa invalidação da presença feminina aparece nas três falas. A Jackie conta que algumas propostas até surgiram, mas com a ressalva de que ela buscava encrenca, só porque lutava pelos direitos dela. No caso da Erika, existe uma invalidação da trajetória dela. Tanta coisa foi imposta que ela tinha pouca voz sobre si mesma. Mas, para mim, o mais chocante é o caso da Fabi. Ela é dona de dois ouros olímpicos. Ela tem todo o conhecimento, mas o convite não vem porque esse não é o espaço dela. Ela não tem que ser convidada porque não é para ela estar lá.”

A professora Katia Rubio complementa: “Quando você não tem um modelo de projeção, é muito difícil constituir um papel. As mulheres mais destemidas, extrovertidas, briguentas, acabam abrindo caminho em meio à selva. Talvez, depois de aberto esse caminho no facão, quem vem atrás use um trator e pavimente uma estrada. Primeiro uma estrada de terra, para depois colocar o asfalto. Mas as pioneiras sempre pagam o preço mais alto”.

Seleção feminina de vôlei sub-17
Seleção feminina de vôlei sub-17. Hélia Rogério de Souza Pinta, a Fofão, é a terceira pessoa da direta para a esquerda na terceira fileira de baixo para cima - Foto: @fofaosete/Instagram

Mudanças

Hélia Rogério de Souza Pinto, popularmente conhecida como Fofão, foi a primeira mulher a assumir o comando de uma seleção brasileira de vôlei. Desde 2023, a pós-atleta e medalhista olímpica comanda a seleção feminina sub-17.

Apesar da marca importante, Fetter aponta ressalvas. “Eu trabalhei muito tempo nas categorias de base e pude perceber o quanto as mulheres sempre são colocadas nos menores níveis. A Fofão comanda o sub-17, a categoria mais baixa. É por que ela está começando e aprendendo? Talvez. Mas é importante ficarmos atentos a esse questionamento”.

Tanto Julio Fetter como Katia Rubio indicam o projeto de transição de carreira integrado a toda a trajetória dos anos competitivos como um fator de extrema importância para mudar essa realidade. A professora explica que “quando é trabalhada uma proposta de autoconhecimento, despertando a consciência sobre as próprias habilidades, os atletas se abrem muito mais para a vida. O esporte profissional prende o atleta em uma caixa bem pequena. É como se ele fosse incapaz de fazer outra coisa senão a prática esportiva”.

“Eu acho que a mudança está em entender que esse é um lugar possível de ser ocupado. É um lugar que deve ser delas. Ele ainda parece muito inacessível e oculto como possibilidade. O projeto de transição de carreira tem que ser algo construído durante toda a trajetória e, dentro disso, o lugar de treinadora deve ser colocado como uma possibilidade real para as mulheres”, conclui Fetter.

*Estagiária sob supervisão de Tabita Said
**Estagiária sob supervisão de Simone Gomes de Sá


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