Para pesquisador e ativista indígena, STF rejeitará o marco temporal com tese diversa do relator

Tese que restringe reivindicações de terras indígenas tem quatro votos contrários e dois favoráveis; julgamento continuará no dia 20 de setembro

 01/09/2023 - Publicado há 10 meses

Sessão plenária do STF em 31 de agosto de 2023 continuou o debate sobre a validade da tese do marco temporal - Foto: Reprodução/Nelson Jr./SCO-STF via Flickr

O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta semana o julgamento do marco temporal, uma tese jurídica que afirma que os povos indígenas só têm direito às terras que ocupavam na data de promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. Com os votos dos ministros André Mendonça, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso, o placar do julgamento agora soma quatro votos contrários à tese do marco temporal e dois favoráveis.

Na avaliação de Maurício Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e doutorando em Antropologia Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, é provável que os próximos votos confirmem a maioria contrária ao marco temporal. No entanto, vem se desenhando durante o julgamento um entendimento que diverge da tese proposta pelo relator do caso, o ministro Edson Fachin.

“O ministro (Edson Fachin) tem o cuidado de reconhecer vários direitos dos povos indígenas, sejam eles os territoriais, sejam eles os direitos humanos ao acesso, ao exercício da cultura. Ele entende a cosmologia dos povos indígenas e a sua ligação com o território. Então, nossa avaliação tem sido muito positiva sobre esse voto. Mas me parece que não é o que está se desenhando ali na Suprema Corte”, disse Maurício Terena ao Jornal da USP, referindo-se à discussão das teses apresentadas pelos ministros. As maiores divergências entre as teses dizem respeito às indenizações pagas a pessoas não indígenas que tenham ocupado terras indígenas sem sabê-lo.

Maurício Terena é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP - Foto: Arquivo Pessoal

A leitura do voto do ministro André Mendonça se estendeu por dois dias. Favorável à tese do marco temporal, ele mencionou a intenção dos constituintes em trazer uma “força estabilizadora” para o País a partir da promulgação da Constituição. Para ele, isso se traduziria no direito dos povos indígenas às “terras que tradicionalmente ocupem, e não que venham a ocupar futuramente”.

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Na quinta-feira (31), Gilmar Mendes pediu um aparte ao voto de Mendonça para contar uma série de anedotas sobre a situação econômica dos habitantes de terras indígenas demarcadas ou em processo de demarcação. Em diálogo com Mendonça, ele também criticou a necessidade de consulta às comunidades indígenas para a realização de obras de infraestrutura que atravessem seus territórios tradicionais – algo que está previsto na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada formalmente pelo Brasil em 2002.

Depois, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso votaram contrariamente ao marco temporal. Ambos argumentaram que a Constituição Federal não fixa uma data para a reivindicação das terras indígenas nem condiciona essas reivindicações à existência de ações judiciais ou de um conflito que coloque a vida de pessoas indígenas em risco. Zanin elencou uma longa lista de legislações e artigos de constituições anteriores que já reconheciam, desde a década de 1930, o direito originário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas. Barroso lembrou que a ocupação tradicional não necessariamente se dá da mesma maneira que a posse de um terreno na sociedade dominante e afirmou que nem mesmo na decisão do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) o marco temporal foi utilizado para recusar a reivindicação daquela comunidade.

Cocares expostos na grade lateral do STF durante manifestação de indígenas contra o marco temporal na Praça dos Três Poderes no dia 31 de agosto de 2023 - Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Manifestação de indígenas contra o marco temporal, na Esplanada dos Ministérios, no dia 31 de agosto de 2023 - Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

O caso concreto que o STF está julgando é um recurso extraordinário que opõe a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ao Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina em uma disputa quanto aos direitos dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani de permanecer em uma área de reserva ambiental. Na ação original, a Procuradoria do Estado de Santa Catarina usou o argumento do marco temporal para defender seu pedido de reintegração de posse da área. Como os ministros consideram que o caso traz um tema de repercussão geral, o entendimento que eles derem à questão do marco temporal orientará todos os tribunais do País.

Leia, a seguir, o que Maurício Terena disse ao Jornal da USP sobre os votos desta semana e as expectativas do movimento indígena para as próximas sessões do julgamento, que será retomado no dia 20 de setembro.

Alguma das teses já apresentadas pelos ministros converge com o posicionamento da Apib?

O voto do ministro Edson Fachin é o voto que mais se aproxima das pretensões do movimento indígena, inclusive da entidade. O ministro tem o cuidado de reconhecer vários direitos dos povos indígenas, sejam eles os territoriais, sejam eles os direitos humanos ao acesso e ao exercício da cultura. Ele entende a cosmologia dos povos indígenas e a sua ligação com o território. Então, nossa avaliação tem sido muito positiva a esse voto. Mas me parece que não é o que está se desenhando ali na Suprema Corte, porque é preciso ver a questão das teses.

Gilmar Mendes ainda não votou. Dá para antecipar o voto dele pelo aparte ao voto de André Mendonça? Qual é a expectativa quanto aos votos dos outros ministros?

O Gilmar Mendes, ele é aquela pessoa que ele se mostrou hoje, um ministro que tem um posicionamento que beira o racismo aos povos indígenas. Então, dele, de André Mendonça e Kássio Nunes nós não esperávamos coisa boa, né? São ministros que têm um posicionamento bem ruim em relação aos direitos humanos e aos povos indígenas. Eu acho que Carmem Lúcia, Rosa Weber, Roberto Barroso, como votou hoje, são ministros que têm um compromisso com a luta, então provavelmente são votos favoráveis. O ministro Dias Toffoli e Fux imagino que votem contra o marco temporal, mas meio que indo para uma tese do meio-termo aí.

Nesse julgamento tem se falado muito sobre insegurança jurídica quanto à propriedade da terra, mas você mesmo já disse em outras ocasiões (inclusive ao Jornal da USP) que o que geraria insegurança jurídica é a tese do marco temporal, que, caso aprovada, poderia levar a uma onda de ações judiciais para revisão de processos de demarcação já concluídos. Ao mesmo tempo, a gente vem de um longo período de paralisia nos processos. Essa paralisia por si só já não gera insegurança?

Insegurança jurídica para quem e para quê, né? Eu acho que essa pergunta nos provoca a pensar justamente a insegurança jurídica que os povos indígenas vivenciam num país que sistematicamente viola seus direitos territoriais, que tem uma política de demarcação de terras que demanda tempo e recursos humanos dos quais o Estado não dispõe, tornando o processo de demarcação um processo extremamente moroso. Então, a insegurança jurídica nós estamos (vivenciando) acho que desde 1500, né?

Há quanto tempo a tese do marco temporal está colocada?

Ela surge no caso da Raposa Serra do Sol e, desde então, tanto o governo quanto esferas do Judiciário colocam ela sobre a mesa. Raposa Serra do Sol foi um grande caso paradigmático, mas o Michel Temer também, após o golpe de Estado, edita um parecer na Advocacia Geral da União e gesta ali dentro do âmbito do Executivo (nota da reportagem: o Parecer Normativo 001/2017 da AGU determinou que o governo federal adotasse uma série de restrições às demarcações de terras indígenas, incluindo as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol e a tese do marco temporal). E também já no Legislativo há um tempo ela é discutida.

Algumas lideranças indígenas têm dito que enfrentar esse processo do STF tem sido cansativo. Você também se sente assim?

Olha, eu acho que todo mundo que luta por direitos chega a algum ponto dessa luta que o cansaço bate, né? A luta é árdua, são diversas batalhas que a gente enfrenta cotidianamente para fazer a manutenção da vida, dos direitos territoriais, direitos simples. Mas a única certeza que a gente tem nessa vida enquanto povos indígenas é a luta. Então, por mais que a gente esteja cansado, a gente tem se organizado num ponto que o movimento indígena também passa a pressionar diretamente essas esferas de poder. Então, hoje a gente tem uma capilaridade muito boa e a luta passou a ser travada em outros âmbitos também.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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