Foto: Laboratório de Imagem e Som em Antropologia/USP

Nova presença artística de africanos em São Paulo muda a cena musical paulistana

Projeto da USP pesquisa músicos e artistas africanos imigrantes ou refugiados na capital há 10 anos e oferece ao público acervo audiovisual dos encontros interculturais; documentário produzido pelo grupo venceu o Prêmio Pierre Verger deste ano

 08/09/2022 - Publicado há 2 anos

Texto: Tabita Said

Arte: Ana Júlia Maciel

Entre 2011 e 2016, o Brasil viveu um crescimento de quase 40% no número de pessoas que migraram dos 55 países da África para o País. Com a Copa do Mundo de 2014, o ingresso de imigrantes africanos subiu de pouco mais de 3 mil para 5.226, totalizando mais de 21 mil pessoas no período. Trazendo consigo a diversidade e particularidades de suas culturas locais, alguns desses imigrantes e refugiados africanos, em especial, músicos e artistas, têm buscado espaços de atuação profissional na cidade de São Paulo.  

Um grupo de pesquisadores da USP se dedica a compreender os impactos produzidos por esses africanos nos mundos artísticos e nas lutas sociais da cidade. O que trazem em suas bagagens e que tipo de arte nasce dos encontros entre africanos e outros habitantes desta megalópole? Estas perguntas guiaram o trabalho denominado Afro-Sampas, que gerou um portal com filmes, biografias, shows e performances de artistas africanos em São Paulo. O nome do projeto é uma brincadeira com o nome de um álbum de 1966, em que Baden Powell “carioquizava” o candomblé com os afro-sambas compostos por Vinicius de Moraes.

Entre os documentários gerados pelo projeto, o Afro-Sampas – de mesmo nome – venceu como melhor filme etnográfico do Prêmio Pierre Verger deste ano. Assista no player abaixo:

“Desta pequena amostra que acompanhamos, vemos experiências muito distintas que cada artista traz de seu país. Todos se depararam com uma visão homogeneizante que temos, no Brasil, do que é ser africano”,

Rose Satiko Gitirana Hikiji – Foto: Marcos Santos/ USP Imagens

conta a antropóloga Rose Satiko Gitirana Hikiji, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e vice-coordenadora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP). Ela e o colega Jasper Chalcraft realizaram este trabalho por meio da pesquisa Ser/Tornar-se Africano no Brasil: Fazer musical e patrimônio cultural africano em São Paulo. A pesquisa de Rose e Chalcraft é uma das 29 ligadas ao projeto O Musicar Local: Novas Trilhas para a Etnomusicologia, abrangendo os níveis de Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado. As pesquisas abordam uma gama muito diversa de engajamento com a música e de grupos, como, por exemplo: performances do choro, folia de reis, grupos de carimbó, musicares de africanos em São Paulo, funk lésbico, Torés Kariri-Xocó, festas de música eletrônica, pesquisas históricas sobre musicares, taiko, sessions de música irlandesa, entre outros.       

Desde 2016, o projeto de pesquisa acompanha músicos e artistas africanos imigrantes ou refugiados que estão na cidade há pelo menos dez anos. Entre os países que mais tiveram interlocução, estão o Togo, a República Democrática do Congo, Cabo Verde, Angola e Senegal. Observando de que maneira essas pessoas se encontram e constroem espaços de atuação na cidade, a pesquisa identificou que o “musicar” dos imigrantes transforma e é transformado pelo local onde está inserido. Este movimento, os pesquisadores chamam de “diáspora criativa”.   

No entanto, este processo não é incentivado apenas pela boa troca cultural e musical. Há fatores como a descoberta de um novo país, no qual são identificados como negros; as dificuldades de inserção no mundo musical, além das questões individuais que os levaram a deixar seus países. “Nossa pesquisa está atenta para como estes artistas inventam um patrimônio cultural como ato de questionamento e de reivindicação do passado para a construção do futuro. Por outro lado, a questão de como a cidade de São Paulo é aberta para a diversidade cultural musical, que oferece espaços de apresentação”, compara a antropóloga. 

O estudo identificou ainda um forte desconhecimento do Brasil com relação à diversidade do continente africano. A visão estereotipada, de uma ideia geral de África, ignora as especificidades de seus diferentes países. “Cada qual com um estilo, uma estética e referências musicais diferentes. Por exemplo, o Congo tem uma capital cosmopolita, efervescente, que é Kinshasa. Moçambique tem muitas influências, mas Maputo é muito contemporânea, inclusive com a questão do jazz. Já o Togo traz o aspecto folclórico, as danças tradicionais do oeste africano e algo da África do Sul”, explica Rose. 

Gringos, nômades, pretos. “Ser africano no Brasil – seja no palco, no estúdio de gravação, em eventos ‘artivistas’ ou solidários – é sempre um ato de resistência”, afirmam Rose e Chalcraft em um recente artigo escrito para a Revista de Antropologia da USP. Nele, os antropólogos registram o encontro entre o músico congolês Yannick Delass e a moçambicana Lenna Bahule. “Eu sou um músico internacional”, conta Delass. “Só em São Paulo que eu estou sendo músico refugiado! Parece que está no ar aqui de São Paulo: o preto vem para o Brasil, e em São Paulo é refugiado. Só porque sou preto me chamam de refugiado”, completa.

Veja a seguir outros dois filmes produzidos pelo LISA:

Acordem!

Promovendo a reunião de músicos africanos e brasileiros, o projeto Afro-Sampas também teve como objetivo gerar vídeos e filmes sobre os fenômenos musicais produzidos pelos encontros. Além de vencer a 33ª edição do Prêmio Pierre Verger, da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), o filme Afro-Sampas ganhou como melhor longa-metragem da mostra de filmes do Comitê de Imagem e Som da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) de 2020. Além dele, o grupo também fez o Tabuluja (“Acordem!”) – indicado ao Prêmio de Desenvolvimento Internacional: Mobilizando Vozes Globais, do Arts and Humanities Research Council – e o Woya Hayi Mawe (“Para onde vais?”) – vencedor da edição de 2020 do Prêmio Pierre Verger. Os vídeos podem ser assistidos no portal Afro-Sampas.

“Todos os filmes foram feitos em uma chave de pesquisa colaborativa. Em Tabuluja, por exemplo, o trabalho partiu de Shambuyi Wetu, artista da República Democrática do Congo refugiado em São Paulo. Ele é co-realizador do filme. Nos outros casos, a participação dos artistas foi muito presente. Em Woya Hayi Mawe, a musicista Lenna Bahule roteirizou o trabalho de captação de imagens, sugeriu os lugares e indicou situações que deveríamos filmar em Maputo”, explica Rose. Em entrevista ao Jornal da USP no ano passado, Lenna comentou que a experiência de participar do filme e ter a história dela reconhecida foi gratificante. “O documentário trouxe um olhar diferente sobre a minha trajetória e o meu país. Além de poder me comunicar com meu povo, é uma forma de divulgar nossa cultura, que foi silenciada com o processo colonial. Não precisamos só depender da arte estrangeira, o filme é uma boa forma de demonstrar que a arte moçambicana tem sua validade”, relatou.

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O grupo de pesquisa da USP está finalizando mais um filme. A previsão é de que seja divulgado até o final deste ano. De acordo com Rose, a ideia é mostrar os palcos, muitas vezes construídos pelos artistas, como espaços de atuação. “O Afro-Sampas tinha uma pegada mais intimista, de encontro dos músicos. Este novo dá conta dos palcos; sejam espaços públicos de performance, sejam palcos construídos pelos próprios artistas, como é o caso do Centro Cultural Afrika, na [Rua] Major Diogo, do artista congolês Yannick Delass”, explica. 

Trecho do filme Tabuluja – Imagem: Reprodução / Laboratório de Imagem e Som em Antropologia

 Yannick Delass no filme Afro-Sampas – Imagem: Reprodução / Laboratório de Imagem e Som em Antropologia 
 

Lenna Bahule no filme Woya Hayi Mawe – Imagem: Reprodução / Laboratório de Imagem e Som em Antropologia

Performance de Shambuyi Wetu – Imagem: Reprodução / Laboratório de Imagem e Som em Antropologia

Antropologia da música

“Em terra de preto, a gente não precisa ser preto, né? A gente simplesmente é. Aqui [em Moçambique] a gente tem outros tipos de preconceitos. Aqui a gente encontra uns pretos ricos: têm os pretos ricos e os pretos pobres, né? Somente estes. Mas lá [no Brasil], a maioria dos pretos são pobres. Então, além de ter o racismo de cor de pele, é também um racismo econômico.” A fala é da artista Lenna Bahule, para o filme Woya Hayi Mawe – Para onde vais?. Lenna, que recebeu uma formação musical erudita em Maputo, teve contato com a música brasileira ouvindo discos de MPB, que seu pai, engenheiro de som e colecionador de música, tinha em casa. 

A experiência de Lenna possibilitou aos antropólogos experimentar a música e o filme como ferramentas de estudos culturais interativos. Para Rose e Chalcraft, o conhecimento gerado se dá a partir de escuta, fazer musical, audiovisual e troca criativa. “Não é um tipo de pesquisa em que o desenvolvimento parta 100% dos pesquisadores. Os resultados vêm desta troca de questões que são nossas e deles. É uma pesquisa de longa duração, de meses ou anos de investigação, e demanda investimento de tempo, de construir uma relação. Alguns desses interlocutores conheci em 2016 e ainda continuamos nos comunicando. Por exemplo, a Lenna Bahule voltou para Moçambique, mas continuamos interagindo”, conta Rose.

Para realizar a pesquisa, o projeto contou com apoio da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP e financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que já dura seis anos. “Nos últimos seis anos, a etnomusicologia em SP foi muito beneficiada por este projeto e este financiamento, que resultaram na formação de pesquisadores em todos os níveis de carreira e agora se tornam disseminadores deste campo de pesquisa. É uma área em crescimento e o nosso projeto formou muita gente em antropologia da música”, diz.


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