Livro celebra trajetória acadêmica e militante do professor Kabengele Munanga
O professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP é referência para uma geração de docentes negros e negras que disputa os rumos da educação brasileira
O ano era 1993. Centenas de pessoas se reuniram em Salvador durante quatro dias de setembro para participar do 1º Seminário Nacional de Universitários Negros (Senun), realizado nas dependências da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Uma dessas pessoas era o professor Kabengele Munanga, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Convidado a palestrar no evento, o professor Munanga chamou a juventude presente para refletir sobre o papel da universidade no combate à discriminação racial.
“Que universidade o povo negro quer? Uma universidade que contemple as realidades e as necessidades do povo brasileiro no qual o negro se inclui. Não vejo como o negro poderia participar dos debates sobre as reformas universitárias vivendo fora dela e conhecendo mal seus problemas e dificuldades”, disse o professor Munanga em um trecho da palestra, cujo conteúdo foi recuperado a partir de um manuscrito e transcrito de forma inédita no recente livro Negritudes: Diálogos com o pensamento de Kabengele Munanga.
Lançado no final de 2022 pela editora Autêntica, Negritudes é um livro-tributo ao professor da FFLCH, aposentado da USP desde 2012. O livro é organizado por quatro professores universitários que foram parte da geração de estudantes do 1º Senun: Jadir Anunciação de Brito, professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Fabiana de Lima, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB); Fernanda Felisberto, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), no campus de Nova Iguaçu; e Sergio Luiz Baptista da Silva, egresso da USP e também docente da UFRJ.
O título evoca o livro Negritude: Usos e sentidos, de autoria de Kabengele Munanga, originalmente publicado em 1988. Essa citação já dá pistas de que, para os organizadores da homenagem, Munanga é uma importante referência tanto em termos de produção acadêmica quanto de militância política no movimento negro, devido à sua intensa participação nos debates para a construção das políticas afirmativas que vêm transformando os ambientes universitários nas últimas décadas.
Um tempo espiralado
Jadir Anunciação de Brito e Fernanda Felisberto estiveram no seminário de 1993 em Salvador, quando eram estudantes. “Aquele debate ali naquele discurso é o que está colocado hoje em muita discussão não só acadêmica, mas também política¨, diz Jadir, referindo-se à atualidade da palestra ministrada 30 anos atrás por Munanga. Para o professor da UFRJ, conectar eventos tão distantes no tempo não é difícil quando se rompe com a noção ocidental de tempo linear e se pensa nos acontecimentos segundo a noção iorubá de um tempo espiralado. Essa noção de tempo, que valoriza a ancestralidade, é expressa por um conhecido aforismo nagô: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje”.
Assim, apesar das políticas de ação afirmativa e o sistema de cotas terem virado assunto na agenda política brasileira somente a partir da Conferência de Durban, realizada em 2001 na África do Sul, Fernanda lembra que os debates do 1o. Senun já apontavam na direção dessas políticas públicas.
“Ano passado a gente já consegue 20 anos de política de cotas no País. Então, se a gente fizer inclusive uma atualização desse processo, [vemos que] 20 anos de uma política pública no Brasil podem de fato, com intencionalidade, mudar o cenário da educação brasileira. A gente tem uma ministra que é fruto das cotas. Anielle Franco é fruto das cotas. Ou seja, a despeito da miopia social que esse país racista vive, a gente está aí, construindo e avançando nesse cenário político e da educação brasileira”, analisa a professora da UFRRJ.
Jadir comenta que os últimos anos têm sido marcados por uma efervescência política nas universidades públicas brasileiras que é tributária do pensamento de Kabengele Munanga. “A gente tem uma expansão muito grande de coletivos de estudantes negros e negras na universidade, mas há um fenômeno novo, que é o surgimento de coletivos de docentes negros. E há um fenômeno que não é novo, que é o fenômeno dos NEABIs, que são os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas. Em todos esses três processos, tem pessoas que foram ou orientadas ou influenciadas também politicamente pelo trabalho que o professor Kabengele Munanga fez. Claro que não é o trabalho de uma pessoa sozinha. Mas há correlações, relações diretas e indiretas”, explica.
Na USP, esse contexto de efervescência recentemente se traduziu em uma carta aberta do Coletivo de Docentes Negros e Negras demandando a reserva de vagas nos concursos para professores e a criação de um incentivo para progressão na carreira. Na UFRJ, conta Jadir, a próxima eleição para a Reitoria, que acontece nos dias 23 e 24 de abril, terá pela primeira vez uma chapa negra na disputa. Em outras universidades, a chegada de docentes negras aos mais altos postos de comando já é realidade – é o caso da UFSB e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Contribuição acadêmica e nas políticas antirracistas
Kabengele Munanga faz parte de uma geração de intelectuais negros que passaram a integrar a academia entre as décadas de 1980 e 1990. Trata-se de uma geração que inclui nomes como Milton Santos, Lélia Gonzalez e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Entre suas várias contribuições estão seus estudos sobre as relações raciais no Brasil, sua defesa do sistema de cotas no Supremo Tribunal Federal e a presidência da comissão que forneceu as bases para a pioneira Comissão de Heteroidentificação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde lecionou após a aposentadoria na USP.
A proposta do livro “Negritudes” é justamente homenagear a trajetória de Munanga, sem deixar de humanizar sua figura. Para isso, a publicação reúne textos de colegas, amigos, alunos e parentes do professor aposentado da FFLCH. O prefácio é assinado pela ex-ministra da Igualdade Racial, Nilma Lino Gomes, que foi orientanda de Munanga no doutorado.
Negritudes foi pensado também como um projeto conjunto com a concessão do título de Doutor Honoris Causa que Kabengele recebeu da UFRJ em 2021. Originalmente, a homenagem deveria acontecer em 2020, mas a pandemia atrasou os planos. A produção do livro, propriamente, durou três anos, durante os quais o professor Munanga sequer imaginou que havia uma homenagem a ele no forno.
“Eu não sabia! Esse projeto começou no ano de 2020, inclusive viria um dos meus amigos que mora na África, Olabiyi [Yai], ex-embaixador do Benim junto à Unesco, que não deu porque ele faleceu antes. Vejo o texto dele nesse livro; quer dizer [que] foi um processo que começou sob sigilo. Meu filho participou também, não me falou nada. Então, para mim foi uma grande surpresa”, conta o professor aposentado, em conversa por videoconferência com o Jornal da USP.
De seu atual endereço no Litoral Sul do Estado de São Paulo, Kabengele Munanga segue atento à pauta racial tanto dentro quanto fora da universidade. Questionado sobre o que se pode esperar da revisão da Lei de Cotas no Congresso, ele diz esperar que os parlamentares aprovem sua continuidade, pois há forte pressão social pela manutenção dessa política pública.
“Você não resolve um problema de quatro séculos em 20 anos. A Índia adotou esse modelo em 1953, três anos depois de sua independência, para inclusão das castas inferiorizadas, os dalits. Havia uma espécie de apartheid baseado na religião milenar. Essas políticas já estão em construção na Índia faz 72 anos. No Brasil se imagina que em 10, 20 anos você já resolveu um problema”, comenta o professor da FFLCH.
Dia Internacional da Discriminação Racial
Por Camilly Rosaboni
No dia 21 de março, é celebrado o Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, em reconhecimento à luta por conquistas e direitos sociais para a população negra. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), em memória ao Massacre de Sharpeville, que ocorreu na África do Sul, na década de 1960. Naquele momento, 20 mil negros protestavam contra uma lei que limitava os lugares por onde eles podiam circular. O ocorrido deixou 69 vítimas fatais e 186 pessoas feridas.
Em entrevista ao Jornal da USP, o professor Valdir Martins, da Universidade Zumbi dos Palmares, discute a importância da data, assim como as transformações na comunidade acadêmica diante das políticas de cotas e da presença cada vez mais recorrente de docentes negros, núcleos de estudos afro-brasileiros e indígenas e coletivos de professores e estudantes negros. Ouça a seguir no áudio:
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