Foto: Cedida pela pesquisadora

USP ultrapassa fronteiras e leva projeto de leitura a uma prisão de Angola

Experiência desenvolvida no presídio de Cacanda, em Angola, mostra como a leitura pode levar a reflexões positivas e libertadoras

 15/08/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 18/08/2022 as 10:16

Texto: Antonio Carlos Quinto

Arte: Adrielly Kilryann

Três anos atrás, uma carta datada de 21 de agosto de 2019 dizia que somente “três pessoas” saberiam que o cidadão angolano de nome Osvaldo Mateus Nunes Fernandes estava acometido por uma grave doença. A revelação daquele homem, que era interno de uma prisão de Cacanda, em Angola, estava transcrita numa carta com quatro páginas destinada à professora Thais Barbosa Passos, pesquisadora da Faculdade de Educação (FE) da USP. “Até este momento, só três pessoas sabem da minha situação. É o ‘Senhor Todo Poderoso’ e a pessoa que vai ler esta história”. Assim, a professora Thais foi a terceira pessoa a saber que Osvaldo era portador do vírus HIV. Além disso, o interno autorizou a professora a publicar a sua correspondência em sua tese de doutorado.

Osvaldo, que à época tinha cerca de 40 anos, estava preso no Estabelecimento Prisional de Cacanda, localizado na área do mesmo nome, distante sete quilômetros da cidade do Dundo, capital de Lunda Norte, em Angola. “Permaneci de julho a novembro de 2019 no Dundo, situado no leste daquele país, na província da Lunda Norte, que fica a 1.225 km da capital, Luanda”, conta a pedagoga, hoje doutora, Thais Barbosa Passos. Cacanda, como informa a pesquisadora, é um dos 40 estabelecimentos penais de Angola e não é considerado de segurança máxima. A cidade do Dundo, de acordo com ela, tinha na época cerca de 200 mil habitantes.

Thais Barbosa Passos - Foto: Reprodução/FAPESP

Thais Barbosa Passos - Foto: Reprodução/FAPESP

Ao todo, o presídio contava com uma população de 511 presos, a maioria jovens e condenados por homicídio, com idade média de 30 anos

Os estudos da pesquisadora naquele presídio angolano foram a base para sua tese de doutorado, intitulada Literatura carcerária: a pesquisa-ação no estabelecimento prisional de Cacanda, em Angola, que teve a orientação do professor Roberto da Silva, da FE-USP. “Recebi de Osvaldo a missão de ler a carta e publicá-la em meu trabalho somente quando chegasse de volta ao Brasil. E assim o fiz! ”, diz a educadora.

Abaixo, a íntegra da carta de Osvaldo Mateus Nunes Fernandes que foi entregue à professora Thais Barbosa Passos, no presídio de Cacanda

Direito à educação

Para Thais, a vivência de estudos e trabalhos em estabelecimentos prisionais não começou com essa pesquisa. “Enquanto cursava a Unesp, Faculdade de Filosofia e Ciências, campus de Marília, fiz estágio num estabelecimento penal naquela cidade, no interior de São Paulo”, conta. Mais tarde, no período de seu mestrado, ela atuou na Fundação Casa, na cidade de São Paulo. “Sempre entendi que as pessoas, mesmo que privadas de liberdade, têm direito à educação, que é capaz de despertar no ser humano a possibilidade de melhor refletir sobre a sua condição”, descreve a educadora. Porém, nada comparado, segundo ela, às condições impostas aos internos do presídio de Cacanda.

Algo que também chamou minha atenção eram pedaços de garrafas pet junto às janelas. Eram sistemas improvisados para captação de água da chuva para ser consumida

Mesmo sob condições extremas, Thais conseguiu levar esperança àqueles internos. “Ao todo, o presídio contava com uma população de 511 presos, a maioria jovens e condenados por homicídio, com idade média de 30 anos”, lembra. Na parte do presídio em que Thais atuou como professora, os internos dormiam em celas grandes que comportavam até seis presos, cada uma. E todos viviam sob uma dura rotina. “Acordavam às 5 horas e, muitas vezes, não tinham o café da manhã”, relata. Entre as primeiras atividades do dia, a participação em cultos evangélicos. Afinal, a Bíblia Sagrada era a única fonte de leitura, como constatou Thais. “Os que não iam ao culto, iam para o campo, para trabalhar”, completa.

Pouca água, pouca comida, pouco esporte

Além da carta de Osvaldo Nunes, Thais recebeu outras correspondências de agradecimento por seu trabalho. E entre elas, havia relatos de muita fome. A refeição, quase sempre uma ao dia, era chamada pelos presos de “grama”. “Esse nome era referente à unidade de medida”, explica Thais. “A ‘grama’ vinha em pouca quantidade”, recorda-se a educadora.
Que fazer em um lugar sem recursos, pouca comida, água escassa…? Além das leituras bíblicas, os presos tomavam seus banhos de sol num espaço determinado dentro das próprias celas. Também não havia atividades esportivas. “Algo que também chamou minha atenção eram pedaços de garrafas pet junto às janelas. Eram sistemas improvisados para captação de água da chuva para ser consumida”, conta Thais.

Cartas de internos entregues à professora Thais em agradecimento ao seu trabalho em Cacanda

Livros, bolas, escritas

O objetivo central da pesquisa de Thais foi introduzir a prática da leitura e escrita naquele estabelecimento penal, com base em experiências brasileiras de adotar o trabalho, os estudos e a leitura como fatores de execução penal com vistas à diminuição do tempo de encarceramento.
“Introduzimos esse trabalho por meio de oficinas de leitura e escrita”, conta. Nos primeiros quatro meses de atividades, Thais envolveu 26 internos em um experimento pedagógico denominado Alfabetização Científica. “Nós os estimulamos a falar, pensar, dialogar, ler e escrever, contrastando suas escritas com alguns referenciais”, descreve. No encerramento do projeto eram 24 presos, pois dois deles foram libertados.

Em Cacanda não há serviço de correio. Não há internet. As cartas dos presos destinadas à professora Thais, como a de Osvaldo Nunes, trazem sentimentos de otimismo e de força para seguir adiante

Mas num estabelecimento em que o único acesso à leitura era por intermédio da Bíblia Sagrada, a pesquisadora teve de ir em busca do material necessário para viabilizar o projeto. Assim, Thais conseguiu doações de mais de 800 livros. “Tivemos até de aumentar essa quantidade, já que os funcionários do sistema também se interessaram pela prática da leitura”, conta.

Thais estabeleceu uma rotina em que ia três vezes por semana a Cacanda, sempre no período da tarde. “Depois de um mês de atividades, solicitamos relatórios dos internos sobre suas expectativas de vida. Percebemos satisfação em suas falas”, lembra.
Além da paixão pela leitura despertada em alguns internos de Cacanda, quase todos adoravam o futebol. Sua prática também foi viabilizada com o esforço de Thais, que conseguiu uma doação de cinco bolas junto ao time de futebol da cidade do Dundo, o Sagrada Família.

Mas o que marcou a pesquisadora foram os resultados obtidos junto aos internos e até mesmo aos funcionários que passaram a praticar a leitura. Dentre as diversas questões trabalhadas nas oficinas, Thais lembra a questão dos nomes. “Era comum os presos serem chamados por seus apelidos pejorativos. Evidenciamos a importância de serem tratados por seus nomes”, lembra. Em Cacanda, o presídio é dirigido por uma classe de militares do governo angolano. “Os diretores de presídios eram chamados de ‘Pais’ “, lembra a pedagoga.

Sem comunicação

+ Mais

Superlotação em presídios é o principal fator de disseminação de tuberculose

Em Cacanda não há serviço de correio. Não há internet. As cartas dos presos destinadas à professora Thais, como a de Osvaldo Nunes, trazem sentimentos de otimismo e de força para seguir adiante. “Fica clara a necessidade de continuidade de trabalhos desse tipo”, aconselha a pesquisadora. Na cidade, como informa Thais, houve a continuidade por parte dos próprios presos e até por funcionários. O trabalho da pesquisadora foi apresentado para o Ministério do Interior de Angola. Segundo ela, houve receptividade de parte do órgão governamental e havia um planejamento de continuidade até o ano de 2020. “Contudo, não sabemos se houve maior aproveitamento daquele momento em diante, devido à mudança de gestão”, diz. Após esse trabalho de doutorado, o próximo passo de Thais com relação à sua pesquisa é publicá-la em um livro.

Mais informações: thabpassos@alumni.usp.br

Em Cacanda não há serviço de correio. Não há internet. As cartas dos presos destinadas à professora Thais, como a de Osvaldo Nunes, trazem sentimentos de otimismo e de força para seguir adiante. “Fica clara a necessidade de continuidade de trabalhos desse tipo”, aconselha a pesquisadora. Na cidade, como informa Thais, houve a continuidade por parte dos próprios presos e até por funcionários. O trabalho da pesquisadora foi apresentado para o Ministério do Interior de Angola. Segundo ela, houve receptividade de parte do órgão governamental e havia um planejamento de continuidade até o ano de 2020. “Contudo, não sabemos se houve maior aproveitamento daquele momento em diante, devido a mudança de gestão”, diz. Após esse trabalho de doutorado, o próximo passo de Thais com relação à sua pesquisa é publicá-la em um livro.

Mais informações: thabpassos@alumni.usp.br

+ Mais

Superlotação em presídios é o principal fator de disseminação de tuberculose


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.