Estranhos corpos de Cristo: pesquisa analisa relações entre a religião e o queer no cinema

Pesquisador discute a relação entre o erótico e o sagrado a partir da produção cinematográfica de três diretores

 01/11/2022 - Publicado há 2 anos
O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues (2016), e a iconografia do Martírio de S. Sebastião, aqui da autoria de Antonello da Messina, que é referenciada no filme – Fotomontagem: Reprodução Vitrine Filmes / Wikimedia Commons

 

Em sua pesquisa de mestrado, Renato Trevizano dos Santos assumiu uma tarefa delicada: discutir a conexão entre representações cristãs, erotismo e a sétima arte. Os estranhos corpos de Cristo: reflexões sobre mito, cinema e arte queer a partir de Pasolini, Jarman e Rodrigues busca colaborar para o diálogo entre dois temas que, para algumas pessoas, não devem ser misturados: o sagrado e o carnal. A dissertação, defendida neste ano na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, nasceu como a busca por trindades: cinema, queerness e cristandades. Para isto, o pesquisador se debruçou sobre outras tríades: os cineastas Pier Paolo Pasolini, Derek Jarman e João Pedro Rodrigues, e as produções O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964), O Jardim (The Garden, 1990) e O Ornitólogo (2016), respectivamente.

Santos é graduado no Curso Superior do Audiovisual pela ECA e, já em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), explorou esse assunto. Na época, estudou o realismo fantasmagórico e a presença do queer na obra do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul e do taiwanês Tsai Ming-liang. O cinema dos dois diretores era influenciado pelas religiões praticadas nessas regiões asiáticas, como o taoismo, o budismo e o xintoísmo, além de práticas animistas.

No mestrado, estendeu a discussão sobre a representatividade LGBTQIA+ e os “corpos queer” — corpos que não se conformam aos padrões de gênero e sexualidade — para outras religiosidades, discutindo como o cinema e a arte queer ajudam a reposicionar os mitos na atualidade.

 

Renato Trevizano dos Santos é mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA – Foto: Reprodução/Lattes

“Foi uma demanda, uma necessidade que eu tive de pesquisar esse assunto, devido às urgências do presente. Quis entender como o discurso religioso é utilizado como instrumento de opressão. Olhar para o Brasil e para o cristianismo, que é a base tanto das nossas proibições, quanto das tentativas de libertação”.

 

Entre suas motivações, está o caso da modelo Viviany Beleboni, mulher transexual que desfilou crucificada como Jesus em um carro elétrico na Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo em 2015. Após o acontecimento, a modelo foi vítima de perseguições e ameaças de morte.

 

A pesquisa

Trabalhando em três produções cinematográficas, Santos conta que os filmes escolhidos compartilham algumas características na forma de narrar, além de um tom poético que o interessava.

O Ornitólogo conta a história de Fernando (Paul Hamy), um homem de 40 anos que se dedica à observação de pássaros. Ao navegar em um rio, a correnteza vira sua embarcação e o lança em uma jornada de erotismo, natureza e religiosidade. Os outros dois filmes, de forma semelhante, unem o sensual ao sagrado por meio de uma linguagem lírica marcada por referências e simbolismos.

Segundo Santos, a pesquisa não olha para uma história que se fechou, mas para uma questão ainda aberta e efervescente. O pesquisador cita como exemplos clipes musicais de artistas como Ventura Profana, Getúlio Abelha, Linn da Quebrada e Jup do Bairro, que fundem o queer e representações de figuras religiosas e míticas tanto da religiosidade cristã como de matrizes africanas.

“Essas obras são pontos luminosos em uma história no geral sombria e sinistra na relação dos corpos e corpas LGBTQIA+ com o cotidiano religioso, especialmente com as religiões dogmáticas”, diz o pesquisador. “Eu acredito que a sensualidade e a religiosidade caminham juntas sempre, independente do que a religião postula ou do quanto as religiões neguem essa sensualidade.”

“A gente vive num país repressivo e vozes destoantes por vezes sofrem as consequências dos seus desvios. A gente vê na história perseguições aos LGBTQ+, de assassinatos, agressões e violências. Tudo isso está no plano de fundo, passa por mim, passa pelo meu corpo. Mas olhar para esse passado e para essas pessoas que lutaram e colocaram suas vozes é encorajador.”

 

Em sua dissertação, o pesquisador faz referência a uma aula de Mário César Lugarinho, no curso de Literatura LGBTQIA+ realizado virtualmente pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em que o professor abordou a surpresa de ter constatado que o cânone literário, em várias partes do mundo, era queer. Porém, muitas vezes “no armário”. O professor relembrou que, quando da fundação da Associação Brasileira de Ensino de História, as discussões sobre o componente homossexual de autores como William Shakespeare, Oscar Wilde, Walt Whitman e até mesmo, no Brasil, de Guimarães Rosa, eram em geral relegadas às margens do debate. Para Santos, é importante “tirar do armário” (ou um modo de “queerizar”) também as análises desses textos, que então passam a responder àquela parcela da comunidade que talvez seja a que mais precisa deles — e que a sua precisão possa ser, justamente, a de viabilizar a criação de uma comunidade.

 

Diogo Bachega Paiva, do Laboratório Agência de Comunicação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 


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