Ao assumir identidade de “homem trabalhador” desde cedo, jovens periféricos sacrificam parte da juventude

Pesquisa demonstra como a construção das masculinidades nas periferias brasileiras se relaciona com questões familiares, econômicas e de segurança pública

 Publicado: 14/01/2025 às 16:51
Meninos caminham por viela em comunidade no Rio de Janeiro. Ao fundo, há um carro da polícia.
Nas periferias, a construção das identidades dos meninos é influenciada pela violência policial – Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Os retratos da violência urbana no Brasil recorrentemente associam os jovens periféricos à figura do bandido e ao mundo do crime. Diante dessa pressão, os meninos periféricos encaram, na transição para a vida adulta, duas únicas possibilidades ao tornarem-se homens: a identidade do bandido ou a do trabalhador. A opção pelo trabalho, encorajada pelas figuras maternas, apresenta-se como uma maneira de desviar as trajetórias desses garotos dos caminhos da criminalidade. No entanto, essa escolha também leva esses jovens a sacrificarem aspectos de sua juventude.

Retrato de Bettina Warmling Barros. Ela usa óculos, cabelos lisos soltos e veste uma camisa
Betina Warmling Barros – Foto: CV Lattes

A temática foi abordada pela tese de doutorado da pesquisadora Betina Warmling Barros, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Intitulada Masculinidades à margem: tornar-se homem na periferia brasileira, a tese foi escrita sob a orientação da professora Maria Helena Oliva Augusto. A pesquisa explorou a construção das masculinidades na periferia por jovens em transição para a vida adulta.

“Eu buscava entender um pouco a trajetória desses meninos, como tinham sido as infâncias e como eles viviam a juventude, para, a partir disso, identificar em quais momentos eles foram se constituindo enquanto homens, de que forma, por quais razões, por quais processos sociais, dinâmicas e relações”, relata Betina.

Bandido x trabalhador

Na tese, a pesquisadora chama a atenção para a política que vem sendo adotada no País há alguns anos, que divide os homens da periferia entre bandidos e trabalhadores, os que não merecem respeito e dignidade e os que merecem. Esse padrão de identificação induz os jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade social a assumirem um papel de homem trabalhador desde muito novos, precarizando e limitando os processos transitórios.

“Ao fazer isso, nós estimulamos que os meninos queiram assumir essa posição de trabalhadores para protegerem-se de uma investida policial, para protegerem-se da violência. E, ao fazer isso, eles acabam tendo que pular vários processos da vida. Eles têm que pular a adolescência e tornarem-se homens trabalhadores o quanto antes, já que os processos da adolescência são justamente, tradicionalmente, aqueles de maior risco, de maior envolvimento com a rua, com as festas, com ambientes de lazer, o que, no caso das periferias, está muito vinculado à ideia do crime e da violência”, Betina explica.

Aprendiz, empreendedor ou questionador?

A partir da pesquisa de campo no bairro Bom Jesus, em Porto Alegre, e o acompanhamento por meio de redes sociais ao longo de dois anos, Betina identificou três padrões de comportamento entre os jovens que estavam no processo de transição para a vida adulta: aprendizes, empreendedores e questionadores.

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Jovens enfrentam desafios na construção da própria identidade

Para a pesquisadora, o primeiro padrão é o mais recorrente entre os jovens. Os aprendizes são identificados na pesquisa como aqueles que aprendem a ordem de gênero imposta pela sociedade e incorporam a masculinidade do homem trabalhador. Muitas vezes, exercem trabalhos precários, informais e subempregos, com o objetivo de ter um salário, sem dar importância à atividade ou ao prazer daquele serviço. Também são caracterizados pela prática religiosa ou pertencimento racial, que fazem parte da construção do valor individual.

O padrão empreendedor também tem crescido e se tornado importante nas periferias brasileiras. Os empreendedores são identificados como aqueles que conseguem transformar o trabalho em algo além da questão financeira, que acham um sentido no serviço que prestam. Para identificar esse padrão, Betina estudou os meninos vinculados às barbearias da Bom Jesus que, como ela explica, são mais abertos a relações e afetos, mas que também repetem muitos comportamentos. “Eles também são muito voltados à ideia do casamento, um casamento muito precoce, a ideia do homem como provedor familiar e algumas outras questões”, diz a pesquisadora.

Por fim, a pesquisadora também identificou os meninos que conseguem desvincular-se da masculinidade de homem trabalhador encontrada nos padrões anteriores. “Os questionadores são aqueles que conseguem romper com essa ordem de gênero, principalmente porque conseguiram romper com o território da Bom Jesus. Eles conseguiram circular pela cidade e, por exemplo, fazer uma educação fora, conseguiram fazer um ensino médio que não é no território e, assim, conseguiram almejar outros tipos de possibilidades de serem homens”, conta ela.

Manutenção dos padrões de gênero

Nesse sentido, Betina conclui que esses jovens são estimulados pelas estruturas que os cercam a repetirem padrões de precariedade e desigualdade de gênero. “Eles mesmos vão internalizando essas estruturas para se identificarem e se apresentarem enquanto homens trabalhadores, mesmo muito jovens. E, ao fazerem isso, vão constituindo e internalizando alguns padrões de comportamento que, em alguns casos, acabam repetindo uma certa forma de ser homem, um certo tipo de masculinidade, muitas vezes voltada para a heterossexualidade, com poucas possibilidades de descobertas de outros padrões. É algo muito voltado para a ideia da família e do trabalho como única saída, muitas vezes sem grandes pretensões de crescimento”, explica.

Os resultados apresentados na pesquisa ajudam a entender os problemas no processo de socialização dos jovens da periferia e quais ações poderiam ser diferentes para mudar a realidade deles. “Eu acho que, em termos de políticas públicas, por exemplo, (a tese) dá várias pistas de como nós poderíamos atuar nisso, onde poderíamos investir. E eu acho que, de modo geral, só de trazer essas histórias à tona e tirá-las da invisibilidade, já é um ganho também importante”, argumenta Betina.

Texto de Isadora Batista, estagiária do Serviço de Comunicação Social da FFLCH

Momento Cidade - USP
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Momento Cidade #76: Como as masculinidades são moldadas nas periferias de São Paulo?
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