1ª Marcha Transmasculina do Brasil traz visibilidade a homens trans e não binários

Para especialistas em gênero, marcha pode representar uma melhora nos dados relativos a doenças, assassinatos e violências, ainda subnotificados ou alvos de preconceito estrutural

 11/03/2024 - Publicado há 2 meses     Atualizado: 15/03/2024 as 7:26

Texto: Tabita Said

Arte: Joyce Tenório*

Primeira Marcha Transmasculina do Brasil aconteceu na Avenida Paulista, em São Paulo - Foto: Kalu Reserva

A comunidade transmasculina do Brasil se reuniu em marcha, pela primeira vez, na Avenida Paulista, coração de São Paulo, para dar visibilidade às demandas e vivências de homens transgênero e transmasculinos – pessoas designadas como sendo do sexo feminino no nascimento, mas que expressam identidades masculinas. A 1ª Marcha Transmasculina do Brasil aconteceu no dia 3 de março e reuniu cerca de 10 mil pessoas, de acordo com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) da capital paulista.

“Essa marcha é sobre reivindicação de direitos, sobre empoderamento, valorização e celebração dos nossos corpos e pontuar que temos memória. Estamos mobilizados politicamente, mas acho que o sentimento de pertencimento foi o pilar da marcha, algo que é muito negado às pessoas trans. As pessoas transmasculinas, em especial, sofrem um sentimento muito grande de solidão”, destaca Kyem Ferreiro, coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat) do núcleo São Paulo, que organizou a marcha após assembleia popular.

Kyem Ferreiro - Foto: Arquivo pessoal

Ele explica que o objetivo dos organizadores foi levar para a rua um senso de comunidade, onde todas as vozes que compõem as identidades transmasculinas fossem ouvidas. “[A marcha] é uma resposta potente de como a comunidade transmasculina não está alheia ao que acontece no mundo, na política, na sociedade. Nós somos parte desta sociedade e estamos trabalhando para a melhora não apenas das nossas vidas, diretamente, mas também acreditando que essas mudanças são positivas para todos, de modo geral”, afirma Ferreiro, que também é analista de dados e mestre em Ciência da Engenharia de Alimentos e Biotecnologia pela USP.

O evento teve como tema Homens trans e pessoas transmasculinas existem no passado, no presente e no futuro. Além do tempo, homens transgênero também buscam seus direitos para ocuparem, cada vez mais, espaços sociais e locais seguros de existência. Para especialistas em gênero, a visibilidade para pessoas transmasculinas pode representar uma melhora nos dados relativos a doenças, assassinatos e violências, ainda subnotificados ou alvos de preconceito estrutural.

“A saúde é a principal falha. Quando fazemos mudanças de ‘sexo’ nos documentos, passamos a não conseguir acessar ginecologistas, por exemplo. Além disso, a indústria farmacêutica tem direitos sobre os hormônios, tornando seus valores inacessíveis. Também gestamos e precisamos de acesso à saúde – pública, gratuita e respeitando nossa identidade de gênero – do pré-natal, parto ao puerpério”, explica Lino Gabriel Nascimento dos Santos, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC) e doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. O professor do curso de Têxtil e Moda do IFSC acredita que ainda seja necessário capacitar profissionais de saúde física e mental para lidarem com homens trans. “Precisamos de reconhecimento social”, afirma.

Lino Gabriel Nascimento dos Santos - Foto: Arquivo pessoal

Uma pesquisa da Universidade Federal do Paraná, publicada na revista científica Brazilian Journal of Health Review, entrevistou 27 homens transgênero entre 18 e 51 anos para mapear as principais barreiras para realização de exames que detectam o câncer de colo de útero. Apesar de a maioria estar familiarizada com informações sobre o câncer, o HPV e estar ciente da importância dos testes regulares de Papanicolau, menos de 20% estavam atualizados. De acordo com o artigo, os participantes relataram “experiências desagradáveis no passado, discriminação e medo de procedimentos invasivos”.

Estudo semelhante no Reino Unido identificou que o convite ao rastreamento do câncer de colo de útero exclusivo para pessoas marcadas como sendo do gênero feminino, cria uma “barreira significativa para as minorias de gênero que acessam a triagem”.

O último relatório do Instituto Nacional de Câncer (Inca), divulgado em outubro de 2023, informa que foram estimados no Brasil mais de 17 mil casos de câncer de colo de útero entre 2023 e 2025. O Inca divulgou que o câncer de colo uterino é o terceiro tipo de câncer mais incidente entre mulheres, deixando de destacar que pessoas transmasculinas também estão nas estatísticas. Em 2021, as mortes por câncer de colo de útero representaram 6,05% do total em mulheres. Mas os casos podem estar subnotificados para homens transgênero que mantiveram genitais de nascença.

Considerada a maior pesquisa transgênero dos Estados Unidos, a US Transgender Survey de 2022 entrevistou mais de 92 mil pessoas e identificou que, daquelas que consultaram um prestador de cuidados de saúde nos últimos 12 meses, quase metade (48%) relatou ter pelo menos uma experiência negativa por serem transgênero. Entre as causas, estão: ter tido atendimento de saúde recusado, ser tratado pelo gênero incorreto, ter um fornecedor usando linguagem áspera ou abusiva ao tratá-los, ou ter um fornecedor sendo fisicamente áspero ou abusivo ao tratá-los.

“Enquanto ainda somos invisíveis no imaginário social brasileiro, não há como avançar. Em São Paulo vejo um avanço em comparação aos outros estados brasileiros: é possível acessar hormonioterapia e cirurgias através do Sistema Único de Saúde (SUS). Eu, particularmente, consegui fazer minha transição pelo sistema público, mas tive muitas dificuldades para acessá-lo”, aponta Alexandre Rocha Santos, aluno de graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e ex-integrante do projeto Corpas Trans.

Hoje, chegando ao fim do curso de bacharelado em Ciências Sociais, Alexandre conta que ainda luta pela permanência na Universidade e para lidar com o mercado de trabalho. “Não é simples encontrar um emprego digno que nos valorize considerando todos os nossos marcadores sociais”, diz.

De acordo com o Mapeamento Educacional das Transmasculinidades Brasileiras, realizado pelo Ibrat Nacional e publicado em junho de 2023 na Revista Estudos Transviades, 12,3% dos que responderam ao mapeamento afirmam ter deixado de estudar por terem sofrido transfobia na instituição de ensino, e 1% alega ter sido expulso.

Em sua pesquisa de doutorado, Lino Gabriel Nascimento dos Santos investiga o papel político e social das identidades, e de que forma elas se expressam por meio de performances. “Marchas são uma das maneiras, mas não a única. Pesquiso em festas, que são espaços de liberdade e de experimentação para se criar e relacionar com algumas identidades, e se faz isso através do corpo. A partir da junção das pessoas, com alegria, cuidado, saúde, trabalho, autonomia, elas podem criar uma vida vivível fora das festas”, analisa. No entanto, ainda há muitas conquistas e desafios compartilhados com outras identidades de gênero que permanecem desconhecidos.

Alexandre Rocha Santos - Foto: Thaina Zart

“Se você pensar no apagamento brutal dos dados e na consequente subnotificação geral sobre pessoas trans, chegamos a pouquíssimos dados específicos sobre as transmasculinidades e isso é muito perigoso”, alerta Ferreiro, destacando que o alto índice de assassinatos e tentativas de suicídio entre as pessoas trans costumam ser as informações mais acessíveis. “E o que o Estado vai fazer, de políticas públicas, para que a gente viva? Nós estamos recebendo diariamente mensagens de violência, de desrespeito ao nome social. O Estado precisa dialogar com as especificidades de cada grupo, é isso que temos reivindicado”, diz.

Primeira Marcha Transmasculina do Brasil aconteceu na Avenida Paulista, em São Paulo - Foto: Kalu Reserva

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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