Arte sobre fotos/USP Imagens/BBM/Fac. Zumbi dos Palmares
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Dia 21 de junho de 1839. Rio de Janeiro. Nasce um menino negro no Morro do Livramento, filho de Maria Leopoldina e Francisco José de Assis. Seu nome é Joaquim Maria Machado de Assis. Começa a escrever em periódicos já com 15 anos. Trabalha em gabinetes oficiais. Funda a Academia Brasileira de Letras. Apresenta obras que marcam o tempo e seu nome na literatura nacional e internacional, como Memórias Póstumas de Brás Cubas, A Cartomante, Crisálidas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Torna-se o mais célebre nome da nossa literatura.
Às vésperas do 180º aniversário de Machado de Assis, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP realiza o Simpósio Machado de Assis, 180 anos – Trabalhos em Andamento, Autor em Construção, nos dias 17, 18 e 19 de junho, das 9 às 17 horas. O encontro é gratuito, mas é preciso fazer inscrição prévia, por conta das vagas limitadas. O evento contará com 11 sessões de debates nos seus três dias.
Os temas variam sobre questões como a figura do autor, nuances de obras específicas e sonoridade. Os palestrantes são professores, pós-doutorandos, doutorandos e mestrandos de três departamentos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Um deles será o mestrando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada João Augusto Oliveira Pace. “Existe ainda algo para se descobrir sobre Machado de Assis? Sim”, afirma. Sua discussão vai abordar O Tempo da Pobreza: Algumas Constantes do Conto Machadiano. “É uma análise de como Machado elaborava o tempo através dos personagens que se encontravam no contexto de pobreza do século 19.”
O interesse de Pace pelo autor e por essa temática nasceu na graduação, quando analisou o conto Pai e Mãe, do livro Relíquias de Casa Velha. Depois, levou a ideia de pesquisa para o mestrado na FFLCH. “Percebi que há um presente imediato e urgente, que torna-se vicioso. Ou seja, o tempo da pobreza dos personagens não é superado, ele diz respeito à necessidade de fazer algo naquele momento, mas no desfecho, nota que voltou ao início.”
No conto, o caçador de escravos Cândido Neves tem dificuldades para criar seu filho junto com sua esposa, cogitando abandoná-lo em um orfanato. Porém, Cândido apreende Arminda, que se encontrava grávida e a entrega ao seu “dono” para receber alguma recompensa e continuar com a sua criança.
“Machado sabia do desamparo social da época. Ao longo dos romances, ele vai se desprendendo da perspectiva social de quando nasceu. Vai descobrindo os aspectos que permeiam o poder e a sociedade e constrói suas críticas”, comenta o pesquisador.
O evento tira o pó da obviedade. Muitas vezes perguntamos o que podemos falar de Machado. Na verdade, é o que Machado ainda tem a dizer para nós
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Luciana Schoeps também participará do simpósio, na sessão sobre Som e Sentido na Escrita de Machado de Assis. Ela é pós-doutoranda do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH. Em sua linha de pesquisa, analisa o romance Esaú e Jacob. “Observo no manuscrito rasuras que apontam para o fato de que a escrita do autor se construía em torno de uma possível preocupação com a sonoridade da frase, num movimento que não é despojado da busca de sentido.“
A ideia surgiu quando Luciana observou algumas rasuras que demonstravam correções que mudam o ritmo da frase no romance. “Isso me levou a pensar nas teorias do linguista francês Henri Meschonnic, que, ao falar da relação entre som e sentido, vai cunhar o termo oralidade, que tem a ver com um ritmo estruturante de todo discurso. E dentro da especificidade da literatura e da cultura brasileiras, não podemos deixar de lado a premente tensão entre o oral e o escrito.”
Ela observa também um tom irônico de Machado que foge à definição clássica de que ele quis dizer algo que significa o contrário. “Em Machado nunca é possível afirmar que o enunciado significa o contrário do que é dito, já que muitas possibilidades interpretativas são abertas pela indefinição enunciativa e já que não se tem certeza de quem é o alvo da ironia.”
Luciana fala sobre o sentido da escrita de Machado nos dias de hoje. “É uma literatura que traz mais dúvidas que certezas. Mas essa dúvida é necessária para que o leitor se desestabilize, saia de seu lugar, se coloque no lugar do outro, e para que ele desconfie, sempre, de respostas prontas. Isso é o que Machado tem a nos dizer e continua a nos dizer 180 anos depois. É isso que o torna ainda vivo e tão necessário hoje, quando o mundo nos traz respostas ágeis e simplistas às quais temos sempre que ter um olhar desconfiado e inquieto.”
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Para mim, a obra do autor sempre foi isso: um constante requestionamento do mundo.
A organização do evento é dos professores Hélio de Seixas Guimarães e João Roberto Faria, ambos do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, e pesquisadores associados da BBM. Guimarães já organizou outros eventos relacionados ao escritor. Ano passado foram expostas edições raras de periódicos e de algumas obras. Na ocasião, Guimarães disse que Machado “é um escritor que, com a passagem do tempo, parece se tornar cada vez mais vivo”.
Ele ainda continua concordando com a ideia. “É um autor que nunca deixa de ser contemporâneo. Sempre foi lido de diversas maneiras e teve várias reações ao seu texto. Por exemplo, em sua época, poderia ser muito pouco ligado à realidade. Mas, 180 anos depois, nós o vemos como alguém muito crítico à realidade brasileira.”
Na sessão de que irá participar, Guimarães pretende destacar a construção do prestígio do autor a partir da relação com as editoras e com figuras com quem convivia. “São processos complexos que fazem parte dessa construção. O curioso é como essa autoria está se constituindo por meio da própria escrita. Machado coloca autores ficcionais em suas obras que questionam esse estabelecimento da figura do autor literário.”
Um exemplo é Memórias Póstumas de Brás Cubas. “O autor morto busca na morte o seu reconhecimento. Quer a glória póstuma. Nesse contexto ‘do que ainda virá’, podemos interpretar essa construção. Ele só será um autor literário na posterioridade?”
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Segundo Guimarães, a promoção do simpósio conta com uma variação de temas que corresponde à figura e aos trabalhos de Machado de Assis. “Temos um cardápio variado. São professores e alunos que pesquisam sobre o Machado de diferentes gerações. É uma reunião variada, mostrando as diferentes possibilidades de leitura do escritor.”
O título do evento sugere uma imagem do autor que sempre está sendo construída. Recentemente a Faculdade Zumbi do Palmares e a Agência Grey Brasil lançaram o projeto Machado de Assis Real. A clássica foto de perfil do escritor foi redefinida e mostrou como Machado realmente foi e é: negro. “O racismo o retratou como branco. É hora de reparar essa injustiça”, diz o texto da campanha. Para o coordenador do simpósio na USP, “esse momento em que ele é reivindicado como negro mostra como Machado vai se projetando ao longo do tempo”, reafirmando sua contemporaneidade.
Sendo ele contista, cronista, jornalista, poeta, romancista e teatrólogo, sempre se apresenta no tempo presente. Mesmo com uma passagem de anos grandiosa, Machado ainda fala com a sociedade. E ensina. “Ele diz tantas coisas. Fala da violência. Fala do poder. Nada em sua obra é explícito. Faz com que a gente calibre a nossa sensibilidade e, assim, percebemos sentidos ocultos.”
Machado faz a gente encontrar algo em seu texto e colocar dilemas na nossa própria realidade. Quando lemos alguma obra, saímos diferente
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Primeiras edições de obras de Machado de Assis, do acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP – Foto: Marcos Santos / USP Imagens
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