“Um belo dossiê adormecido no fundo de uma gaveta. Era assim que eu via aquele pacote com quatro ou cinco textos que a professora Jerusa Pires Ferreira havia encaminhado para a revista quase dez anos antes”, conta o editor da Revista USP, jornalista Jurandir Renovato, a respeito do dossiê Semiótica e Cultura: Diálogos Convergentes entre o Brasil e a Rússia, publicado na nova edição da Revista USP, que acaba de ser lançada. “Mas, por uma série de fatores, a sua sugestão de um dossiê sobre o pensador russo Vyacheslav Vsevolodovich Ivánov (1929-2017) permaneceu na expectativa. Como nos contos da tradição oral, que Jerusa tanto gostava, era como se ele estivesse apenas aguardando o momento certo de ser resgatado ou de ser salvo. Esse momento chegou. Aqueles textos são a base do atual dossiê.”
Para dar continuidade à pauta sugerida por Jerusa Pires Ferreira (1938-2019), que foi professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e organizar o dossiê, Renovato convidou os pesquisadores Adriano Carvalho Araujo e Sousa e Gutemberg Medeiros. Eles haviam acompanhado de perto as produções do casal Jerusa Ferreira e Boris Schnaiderman (1917-2016) – fundador do curso de Língua e Literatura Russa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, nos anos 60 – e se empenharam em trazer à luz o projeto inicial, sem descaracterizá-lo.
Na apresentação do dossiê, Sousa e Medeiros lembram, no entanto, que o tempo provocou o inesperado e mudanças de rota. “Ao longo do projeto, ocorreu o passamento de Ivánov, em 2017, mas também os de Boris Schnaiderman, em 2016, e de Jerusa, em 2019, ambos participantes do dossiê original que se destacaram ao promover a vertente epistêmica no Brasil.”
“Ivánov representa grande parte de um século de transformações culturais, sociais e políticas.”
Os organizadores realizaram a edição com cuidado, procurando seguir o pensamento da professora na idealização do projeto. “Jerusa traça uma panorâmica de momentos de Ivánov e seu pensamento no Brasil a partir da relação estabelecida entre ele e Boris desde os anos 1960, seus encontros na Rússia e nos Estados Unidos. Compreende a dimensão ‘renascentista’ do autor, suas matrizes teóricas, o trânsito por neurociência, artes, linguagens e tecnologias.”
Um texto de Jerusa Ferreira, Encontros com V. V. Ivánov, abre a edição. “Ivánov representa grande parte de um século de transformações culturais, sociais, políticas. Pode-se falar em razões do mundo e até na busca de outros universos”, observa. “Ele traz uma dimensão extraordinária que liga o arcaico ao futuro. Ao acompanhar sua trajetória, textos, narrativas, sentimos o seu papel de mediador, de um intérprete das ciências e das artes que não só as aproxima, como faz uma ponte entre elas.”
A professora esclarece que a incursão do pensador pela neurociência, parceria de ciências e artes, traz uma inovadora questão sobre conhecimento e tecnologias de ponta. “Preocupa-se fundamentalmente com educação, em arrojadas concepções, visando sobretudo a uma interferência na educação básica, em operações renovadoras. Fomos observando como se deu um diálogo permanente que Ivánov manteve ao longo de sua experiência, o interesse por todos os temas e a busca de parcerias, notáveis e singulares.”
No artigo Entre o Computador e a Lira: a Obra e as Tribulações de um Homem de Ciência – também publicado no dossiê -, Boris Schnaiderman narra seu relacionamento intelectual com Ivánov ao longo de 48 anos, destacando a amplitude de sua trajetória nos variados campos artísticos e científicos. “Minha relação de amizade e intercâmbio cultural com Ivánov constituiu certamente uma das grandes alegrias que me coube vivenciar. Vejo nele um representante típico da ‘gaia ciência’, o saber com alegria, que me faz pensar no famoso retrato de Einstein mostrando a língua, o oposto do intelectual acadêmico.”
“Ivánov era corajoso, inventivo, ousado, de extrema simplicidade como ser humano e como professor, mas de extrema complexidade.“
A professora Aurora Fornoni Bernardini, da área de Língua e Literatura Russa do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH, descreve a visita de Ivánov no Brasil. “Crítico, semioticista, antropólogo e linguista de fama mundial, esteve em São Paulo em 1990, a convite do Departamento de Línguas Orientais da USP e com recursos da Fapesp, ocasião em que ministrou uma série de conferências e deslumbrou os ouvintes com sua excepcional cultura”, descreve. “Falou sobre alguns de seus trabalhos, como A História da Cultura Mundial, O Indo-Europeu e os Indo-Europeus (obra em dois volumes, publicada em 1984 na então União Soviética e pela qual, em parceria com um colega, o linguista georgiano Tamaz Gamkrelidze, obteve o Prêmio Lênin de 1988), A Semiótica na Rússia e no Ocidente, Os Arquivos de Serguei Eisenstein e Par e Ímpar: o Funcionamento dos Hemisférios do Cérebro, entre outros.”
Já o professor Norval Baitello Júnior, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, explora a universalidade do pensamento de Ivánov. No artigo V. V. Ivánov ou Como Pensar com Quatro Cérebros: Dois Exemplos de Prática Científica Transdisciplinar nas Humanidades, ele descreve o pensador “corajoso, inventivo, ousado, de extrema simplicidade como ser humano e como professor, mas de extrema complexidade”. E ressalta que dificilmente poderá ser enquadrado em uma só área do conhecimento. “Aliava aos múltiplos olhares também seus múltiplos saberes e a inquietude de um pesquisador que rompe as fronteiras disciplinares, tal como rompeu com os cânones das modas e das censuras do seu e do nosso tempo. Era matemático, linguista, indo-europeísta, culturólogo, antropólogo, conhecedor de pré-história e de cinema, historiador da arte; falava 17 línguas, incluindo algumas indígenas, norte-americanas e algumas africanas.”
“Ele se preocupa fundamentalmente com educação, em arrojadas concepções, visando sobretudo a uma interferência na educação básica, em operações renovadoras.”
O casal Jerusa e Boris também é homenageado na nova edição da Revista USP. No artigo Luto Para Que um Pouco de Mim Renasça no Espaço Curvo de um Crisantempo, o poeta, designer gráfico e produtor de mídia interativa André Vallias relembra momentos de sua relação pessoal e intelectual com Jerusa Ferreira no campo artístico, revelando facetas menos conhecidas da pesquisadora, inclusive reproduzindo poemas dela. “Demorei a descobrir Jerusa. O que é lamentável, mas compreensível. Afinal, Boris era o astro, e dificilmente se enxergava de imediato que a sua amada companheira era a galáxia”, relata. “Jamais conheci pessoa com tamanha capacidade de interlocução intelectual, de articulação de redes de conhecimento e criação. Jerusa era a mais viva e alegre encarnação do conceito de network.”
“Convocamos um artista dialogante: o poeta, tradutor e webdesigner André Vallias. O tradutor de Brecht, que nos brinda com uma versão de Heine, relembra momentos-chave de seus encontros com a professora e descortina o seu perfil multidisciplinar”, escrevem os organizadores na apresentação do dossiê. “Sobressai do relato de Vallias a capacidade de interlocução em Jerusa e uma semiótica da cultura que não é mera aplicação de seus autores na ambiência brasileira, pois tem ‘suas razões antropológicas’, como gostava de dizer.”
Em Apontamentos sobre Boris, Jerusa, Florestas de Signos e Afinidades Eletivas, Gutemberg Medeiros reconstitui momentos importantes da trajetória de Schnaiderman. “Lembrar Boris é trazer à baila uma fortuna de nomes que pertencem às mais variadas áreas do conhecimento e atravessam arte, literatura e ciências da linguagem. Isso se deve especialmente aos avanços em ciências humanas a partir de sua atuação como professor de Russo na USP desde 1960.”
Com o texto Peter Schlemihl: Pacto Fáustico em Séries Culturais, Adriano Carvalho Araujo e Sousa encerra o dossiê. “Repito aqui as outras homenagens a Jerusa Pires Ferreira das quais participei e afirmo o quão difícil é escrever sobre sua vasta produção, rica e singular, sensível ao ensaio, coisa cada vez mais rara nos dias de hoje”, escreve. “No caso deste artigo, há ainda um agravante, porque se trata de um tema como o Fausto. Jerusa dispunha de materiais inéditos. Eu me lembro de várias vezes insistir para que parasse tudo e fosse se dedicar ao livro dos Faustos latino-americanos.”