Quando a arte das mulheres desafia a covid-19

Primeira bienal digital do mundo, a “12ª Bienal do Mercosul” destaca o feminismo na arte

 30/07/2020 - Publicado há 4 anos
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Quando a arte resiste à pandemia e 70 artistas têm no horizonte o ideal de abraçar o mundo com suas pinturas, bordados, desenhos, fotografias, instalações, danças, o resultado é a 12a Bienal do Mercosul. Um evento que, segundo as regras legais e sanitárias para combater a covid-19, seria impedido de acontecer. Mas está no ar em um grande desafio, o de ser a primeira Bienal em formato digital do planeta. Todos – artistas, curadores, organizadores – cumprem os impedimentos legais da pandemia, mas reinventam esta edição com a força sugerida pelo seu próprio tema: Feminino(s), Visualidades, Ações e Afetos.

“Para o nosso pesar, a  Bienal do Mercosul não pôde ser realizada em formato tradicional, mas a sua experiência de mais de duas décadas e a relevância de apresentar o universo feminino impediram o cancelamento da mostra”, explica o presidente da Fundação Bienal Mercosul, Gilberto Schwartzmann. “Como um ato de resistência, em nome da arte, decidimos apresentar a Bienal on-line.”

Burial: Erasing Erasure. de Gladys Kalichini – Divulgação

Um desafio para a curadora geral, a argentina Andrea Giunta. Ela e outros artistas já estavam de malas prontas e se organizando para vir a Porto Alegre apresentar a Bienal. Como agora transpor a arte planejada do espaço físico para o virtual? A professora da Universidade de Buenos Aires, escritora e pesquisadora, antes de imaginar uma nuvem sobre a sua cabeça, pensou na frase “Até a chuva passar”, de Carolina Maria de Jesus, escritora que narrou a sua vida na favela do Canindé, em São Paulo. Compartilhou a questão com os artistas participantes – 90% mulheres – e com a equipe de curadores, integrada pela polonesa Dorota Maria Biczel e pelos brasileiros Igor Simões e Fabiana Lopes.

 

“Perdemos entes queridos, acumulamos as marcas de isolamento e imobilidade em nossos corpos. Mas a experiência estética nos museus mudou. E na versão on-line multiplicamos a Bienal ao máximo.”

 

“No projeto original, cerca de 30% dos trabalhos que aconteceriam como instalações e performances exigiriam a interação com o público. Isso não aconteceu”, conta Andrea Giunta. “Todos nós perdemos muitas coisas com essa situação extrema da pandemia. Perdemos entes queridos, acumulamos as marcas de isolamento e imobilidade em nossos corpos. Mas a experiência estética nos museus mudou. E na versão on-line multiplicamos a Bienal ao máximo.”

Percorrer a 12a Bienal do Mercosul é uma viagem. Não até Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Mas até os espaços onde estão os artistas, até os detalhes de suas obras. No site, é possível ouvir suas histórias. E é uma longa peregrinação on-line, porque há muito para acessar. Você entra para conhecer Gladys Kalichini, que nasceu em Lusaka, Gambia, em 1989, em sua série de fotos Enterro: Apagar Apagamento, em suas experiências pessoais de luto e lembrança, e já vai para o site da artista. “O conceito é criar um lugar de luto e ritual para aprender a lidar com a perda e o desaparecimento de mulheres que são historicamente importantes.”

Algún Día Saldré de Aquí, de Fátima Pecci Carou – Divulgação

Interessante também são as histórias que a mostra vai apresentando. Durante os anos da ditadura chilena, as mulheres se reuniram para contar as suas experiências de dor e repressão pelos maridos e filhos desaparecidos através da criação coletiva de peças de tapeçaria. Em fragmentos de tecidos costurados, as conhecidas arpilleras, as mulheres denunciavam os problemas do cotidiano. Esses bordados da Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos de Parral fazem parte do acervo do Museu da Memória e dos Direitos Humanos de Santiago do Chile.

 

Artista homenageada nesta Bienal, Rosana Paulino tem forte presença nas discussões e manifestações contra o racismo. É central em seu trabalho a questão da presença negra na cultura.”

 

Entre as brasileiras está Rosana Paulino, paulistana com graduação e doutorado em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “Artista homenageada nesta Bienal, Rosana tem forte presença nas discussões e manifestações contra o racismo”, observa Lisbeth Rebollo Gonçalves, professora da ECA e presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica). “É central em seu trabalho a questão da presença negra na cultura ‘do outro lado do Atlântico’ e na realidade internacional da diáspora imposta pela escravidão. E é importante sua presença no feminismo interseccional, que põe no centro do debate ‘o que é ser mulher negra’. O seu trabalho introduz, desde o início da sua trajetória, há quase três décadas, densa reflexão sobre raça, racismo, sobre a condição social da mulher negra no Brasil e no mundo.”

THEM, de Liliana Porter e Ana Tiscornia – Divulgação

Segundo Rosana, há várias questões que fazem com que haja um número muito pequeno de artistas visuais negras no País. “E, quando se fala de mulheres, esse panorama se reduz ainda mais”, explica Rosana. “Isso passa por várias instâncias diferentes, que vão desde a dificuldade do acesso à formação universitária até a própria desvalorização do ser artista no Brasil. O País vem mergulhando numa cultura de ignorância muito grande. As mulheres negras são a base da base da pirâmide.”

A arte de Rosana Paulino sai na frente preenchendo a ausência da representação do negro na história das artes visuais. “Sua retrospectiva de 2018, realizada em São Paulo, na Pinacoteca do Estado, e no Museu de Arte do Rio de Janeiro, reuniu todos esses importantes marcos de sua produção. Nesta 12a Bienal do Mercosul, o público, mais uma vez, tem a oportunidade de se aproximar da sua obra”, destaca Lisbeth Rebollo.

 

“No caso do Brasil, uma leitura de gênero na história da arte ganhou força nas últimas duas décadas, e tem sido muito importante para trazer novas perspectivas.”

 

“A questão da representação de mulheres artistas nas instituições e na narrativa da arte foi levantada já na década de 70 por pesquisadoras e feministas, sobretudo nos Estados Unidos”, explica Ana Magalhães, diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. “No caso do Brasil, uma leitura de gênero na história da arte ganhou força nas últimas duas décadas, e tem sido muito importante para trazer novas perspectivas para a disciplina e para como as instituições apresentam a história da arte dos séculos 20 e 21. O que existe em comum entre o início dessa discussão na década de 70 e hoje é o fato de as instituições focarem sua programação de exposições em torno de artistas mulheres.”

Série Tatsuniya, Playing Slowly, de Rahima Gambo – Divulgação

O tema Feminino(s), Visualidades, Ações e Afetos, apresentado pela 12a Bienal do Mercosul, integra um movimento pontual nas artes. Na última reforma do MoMA, em Nova York, para sua reabertura em outubro de 2019, o museu, além de dedicar várias mostras a artistas mulheres, priorizou a aquisição de obras de artistas mulheres para tanto”, esclarece Ana. “No caso do MAC, há uma preocupação por parte da curadoria em pensar não só na questão de gênero, mas em outras questões relativas à representação de alteridades, quando tivermos que reformular a mostra permanente do acervo, que possui um conjunto bem significativo de obras de mulheres artistas brasileiras.”

Para a presidente da Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA), Maria Amélia Bulhões, uma das conselheiras da 12a Bienal do Mercosul, o evento tem o mérito de encarar desafios. “Seu próprio tema, complexo e polêmico, foi abordado por uma curadora mulher sem cair no lugar-comum. Enfrentou com coragem preconceitos fortemente estabelecidos no sistema da arte: o persistente domínio da masculinidade e a falta de tradição do uso da internet, obtendo excelentes resultados.”

(Outros) Fundamentos#3, de Aline Motta – Reprodução

Doutorada pela USP e professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Maria Amélia destaca o processo de pesquisa na seleção dos artistas. “O tema foi tratado com sutilezas, abordando diferentes nuances, desde a postura radical do coletivo feminista Mulheres Públicas até os delicados e simbólicos bordados de Brígida Baltar.”

Ela também chama a atenção para o material apresentado no site, com vídeos, fotos, textos e uma sequência de lives. Essa dinâmica estabelece percursos variados, que o internauta pode percorrer em infinitas e prazerosas visitas. E garante uma experiência que poderia ser restrita a poucos privilegiados, mas agora está disponível para muitos em diferentes lugares do mundo.

Para visitar a 12a Bienal do Mercosul, acesse https://www.fundacaobienal.art.br/

Parede da Memória, de Rosana Paulino – Reprodução

 

Série Tatsuniya, Playing Slowly, de Rahima Gambo – Divulgação

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