Por Janice Theodoro da Silva
Não é fácil ser educado em países com usos e costumes diferentes dos nossos. Morei na China, em Macau, em 1995. Naquela época Macau era território chinês sob administração portuguesa. Foi difícil. Um imenso aprendizado tanto sobre uns (parecidos culturalmente) como sobre outros (muito diferentes em seus hábitos).
Um dia, um empresário brasileiro que vendia carne para os chineses me procurou pedindo ajuda. Ele contou que estava enfrentando dificuldades com os contratos firmados com os chineses. Ele estava desconfiado de que os seus compradores chineses não compreendiam bem o que ele queria e o que representava o contrato nos moldes do Ocidente. Ele desconfiou (com razão) que poderia estar fazendo alguma coisa de errado e não estar sequer percebendo.
Como eu não conhecia bem o tema, optei por conversar com um grande amigo português chamado Alberto Estima de Oliveira (1934- 2008), que vivia em Macau há muito tempo. Ele era responsável por uma empresa voltada para a área de seguros. Alberto Estima era um homem maravilhoso. Tinha morado em Angola, quando jovem, servido na época da guerra colonial e se posicionado a favor dos angolanos. Mas, para além de sua trajetória profissional, eficiente e amorosa em situações limites, era um bom poeta.
Conversei com ele sobre a pergunta que o jovem empresário brasileiro havia me colocado, sobre os contratos e o respeito aos mesmos. Ele me explicou o seguinte:
Para os chineses, contrato é apenas uma “declaração de intenção”, pode ser respeitado ou não.
Eu perguntei: Mas o que é respeitado então?
Ele respondeu: a face (rosto). Eu estranhei ser o rosto.
Ele continuou: negócios acertados se realizam com aqueles que “não gostam de perder a face”. O respeito (manter a face) deve ser comprovado mediante sucessivas conversas pessoais com os envolvidos principais no negócio e suas grandes equipes, silenciosas e atentas a cada detalhe da reunião. O tempo da negociação é longo. A pressa e a ansiedade não são bem-vindas. O grupo silencioso produz uma quantidade enorme de informações quantitativas. Não se deve ter pressa e quantos mais chineses forem para as reuniões e rituais (jantar, almoço etc.), melhores serão as chances de o contrato ser firmado na forma como o concebemos, com uma certa garantia. Aqui na China, disse ele, o contrato em si, como nós o concebemos, pode ser deixado de lado por determinação do Estado ou de outros interesses. Mas fique atenta, Janice, quanto mais amplo for o campo das relações amigáveis, maior será a segurança. Fora desse campo, que aprendi vivendo muitos anos aqui, “o homem é o lobo do homem”. Nunca se esqueça, quando quiser compreender a China, o que foi a grande fome, período em que a metáfora do homem-lobo foi posta em prática.
Alberto Estima era poeta. Só um poeta como ele poderia ter me ensinado a compreender um pouquinho dos chineses. Eu podia andar ao seu lado em qualquer lugar perigoso de Macau. Muitos passantes o cumprimentavam. Era impressionante. Os macaenses, os chineses, os filipinos, ricos e pobres, tinham por ele um profundo respeito. Reza a lenda que em momentos difíceis ele tinha salvado muita gente na cidade. Para mim, só um poeta poderia ter me ensinado tanto do outro lado do mundo: a diplomacia à moda chinesa exige jamais perder, e deixar o outro perder, a face (dignidade e respeito).
Janice Theodoro da Silva é professora titular aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.