Livro retrata a centenária festa da Lavagem do Bonfim

Com 80 fotografias e textos, obra do professor da USP Atílio Avancini mostra em detalhes pouco percebidos o evento que, realizado desde o século 18, reúne anualmente 1 milhão de pessoas em Salvador, na Bahia

 13/09/2016 - Publicado há 8 anos
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Desta sagrada colina

Mansão da misericórdia

Dai-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia

Hino ao Senhor do Bonfim (1923)

 

O cortejo tem início na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador (BA), logo depois da concentração das baianas e do culto ecumênico, em torno das 9 horas da manhã. Até a Colina Sagrada – onde desponta a Igreja Senhor Bom Jesus do Bonfim – são oito quilômetros a pé, num desfile que dura cerca de três horas. Nele, veem-se variadas figuras: baianas com talhas floridas cheias de lavandas, os Filhos de Gandhy – bloco de afoxé, ritmo do candomblé que tem como marca a batida do agogô –, cavaleiros vindos do interior, romeiros com seus chapéus de palha, matutos, capoeiristas, vendedores. A chegada ao adro da Igreja do Bonfim se anuncia com foguetes, confetes e balões brancos, que enfeitam o céu da capital baiana. É chegada a hora de lavar as escadarias da igreja.

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A festa da Lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim, em Salvador – Foto: Atílio Avancini

Iniciada na segunda metade do século 18, essa tradição – que acontece sempre em janeiro e reúne 1 milhão de pessoas – está registrada no livro Lavagem do Bonfim – Formas de Reportar, do professor Atílio Avancini, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, lançado no dia 10 de setembro pela Alameda Casa Editorial. Resultado de tese de doutorado defendida na ECA, a obra traz 80 fotografias feitas por Avancini ao longo de sete cerimônias da Lavagem do Bonfim, entre 1994 e 2009. As imagens são acompanhadas por textos que trazem informações valiosas para o leitor apreciar melhor as fotografias.

“Perambular pela festa é tocar parte da história e descortinar cenários que guardam em si tesouros de brasilidade”, escreve Avancini. Um desses “tesouros” é justamente a lavagem simbólica das escadarias da igreja. De acordo com a tradição, centenas de baianas carregam em suas cabeças talhas de barro – algumas pintadas com a imagem da Igreja Senhor do Bonfim – com flores brancas mergulhadas em águas de cheiro (água de amassi). Essas águas contêm uma solução de ervas esfregadas à mão, acrescida de fragrâncias como alfazema, alecrim, manjericão, hortelã e arruda. “A ideia das águas que purificam corresponde a certas práticas religiosas, como a tradição católica do asseio interno da igreja ou o rito sagrado do candomblé para retirar impurezas e afastar coisas ruins”, destaca Avancini.

A festa da Lavagem, lembra o professor, é resultado do amálgama entre catolicismo e candomblé que permeia a história de Salvador. Famosa pela lenda popular segundo a qual a capital baiana possui 365 igrejas católicas – uma para cada dia do ano –, a cidade é a mais africana do continente, primeiro porto da maior parte dos 6 milhões de escravos africanos desembarcados no Brasil entre os séculos 16 e 19. Mas Avancini ressalva que a mestiçagem não esconde o preconceito. “Convivência não quer dizer ausência de conflito e mistura não é sinônimo de falta de hierarquia”, destaca o professor, citando o antropólogo Darcy Ribeiro.

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A baiana é a figura que melhor representa a Lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim – Foto: Atílio Avancini

Em texto e fotos, Avancini retrata também a famosa “medida do Bonfim” – fitas de sedas bordadas com fios de ouro, com a inscrição “Lembrança do Senhor do Bonfim da Bahia”, trazidas por um padre português no século 19. “A fitinha representa o elo entre o devoto e a fé, seja com o Nosso Senhor do Bonfim, Oxalá ou os orixás.”

Mais ainda do que a fitinha do Senhor do Bonfim, quem melhor representa a Lavagem do Bonfim – continua Avancini – é a baiana, que em seu traje peculiar emana prestígio, reverência e aura. O professor cita que o vestuário típico da baiana está incorporado às doceiras e vendedoras de acarajé. “O traje africano de influência maometana, que gera as vestes da baiana, vem convivendo culturalmente após a invasão muçulmana no século 7 na África”, escreve. É a negra forte e dengosa, portanto, a exibir a saia bordada, as anáguas engomadas em renda fina, a bata, a amarração do torço ou turbante na cabeça (ojá), o pano-da-costa (xale), as sandálias prateadas, os anéis, os balangandãs (amuletos). E também os braceletes, pulseiras, argolões, brincos, colares.”

Ao fim da Lavagem, começa a Festa de Largo, no entorno da Igreja do Bonfim, que é tomado por barracas de comida e bebida. Com início à tarde, o evento não tem hora para acabar. “A Festa de Largo faz lembrar a alegria do mercado público ou da feira livre”, nota Avancini. “Entre o espocar de fogos, cantos populares, cerveja, tapioca, cachaça, acarajé, batucada, capoeira, a gente baiana mantém seu espírito pelo paladar.”

Com traços poéticos, Avancini descreve a Colina Sagrada depois que a Lavagem terminou: “Chega a noite alta repleta de estrelas e aspirações. Na avenida Bonfim (Dendezeiros), a festa corre solta. Balas, baladas, balanceados. Na Colina Sagrada restam algum romeiros em prece, meninas sorridentes, vendedores malabaristas de queijo coalho na brasa e as incontáveis fitinhas coloridas. A brisa e a umidade da atmosfera dançam informes e invisíveis. Quantas histórias contadas, quantas promessas vividas, quantos santos miscigenados. Tudo se esvazia lentamente. A igreja é agora pano de fundo. A cor incandescente das luminárias do Largo do Bonfim sinaliza o sublime, fazendo oscilações entre a luz e a sombra que geram movimentos. E o que é para ser o fim é apenas o começo”.

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Lavagem do Bonfim – Formas de Reportar, de Atílio Avancini, Alameda Casa Editorial, 148 páginas, R$ 92,00.

 

 

 

 

 

 

 


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