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Livro mostra a influência intelectual e política dos “marxistas acadêmicos” da USP
Obra de Fabio Mascaro Querido traz um balanço da tradição de pensamento paulista que, a partir de 1960, pautou as reflexões sobre o País
Resultado da livre-docência de Fabio Mascaro Querido, livro conta a trajetória de intelectuais ligados à USP que tiveram atuação central na vida intelectual e política do País a partir da segunda metade do século 20 – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Zentralbibliothek Zürich/Wikimedia Commons, Raquel Aviani/Secom UnB via Flickr, Reprodução/FFLCH-USP, Garapa – Coletivo Multimídia/Flickr, Cecília Bastos/USP Imagens, Alessandro Carvalho/Agência de Notícias PSDB-MG via Flickr, Damião A. Francisco/CPFL Cultura via Flickr, Pedro Botton/Flickr e Marcos Santos/USP Imagens
O novo livro de Fabio Mascaro Querido, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é uma história de ideias e de pessoas. Uma narrativa sobre como ideias têm origem, tornam-se sólidas, mudam e se confrontam. E de como elas são formadas pelos sujeitos e, ao mesmo tempo, indicam o caminho que estes podem seguir.
Lugar Periférico, Ideias Modernas: Aos Intelectuais Paulistas as Batatas – fruto da livre-docência do autor, defendida em 2022 – tem seu gênesis em 1958, ano do Seminário d’O Capital, grupo de estudos formado por professores e alunos da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, localizada na lendária Rua Maria Antônia, na região central de São Paulo. A ideia era suprir a lacuna da grade curricular, que não se detinha na obra de Karl Marx. Dessas reuniões quinzenais participaram nomes que se tornariam familiares não só nos corredores da academia, mas no cenário intelectual e político brasileiro. É por isso que Querido faz delas o começo simbólico de seu relato.
José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Novais, Octavio Ianni, Ruth Cardoso e os então estudantes Paul Singer, Michael Löwy, Roberto Schwarz e Francisco Weffort são os patriarcas, integrantes do seminário. Reunindo a essa experiência os estudos acumulados dentro e fora da USP, colocariam em cena na vida intelectual brasileira a interpretação de orientação marxista, dando combate ao nacional-desenvolvimentismo que se impunha desde a Era Vargas e encontrava seus principais representantes no Partido Comunista Brasileiro (PCB), no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) e na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
Buscavam veredas outras que o binômio atraso versus modernização para explicar o Brasil, com intenção de serem mais radicais e rigorosos do que a esquerda nacionalista. Rigor orientado pela prática científica forjada na Universidade, ambiente institucional fundamental para esses intelectuais e para quem veio integrar depois esse microcosmo paulista, seja na condição de estudante, seja como professor. Nomes do calibre de Francisco de Oliveira, Paulo Arantes e Marilena Chauí.
Uma geração que, iniciando sua trajetória, bateu com a cara no muro do golpe militar de 1964. Pancada que não apenas levou para o exílio boa parte desse grupo, mas colocou em xeque ideias que vinham cristalizadas no imaginário nacional. Com os fardados no poder e o autoritarismo das botinas, contrariando expectativas, fazia-se a modernização. “Teoria da dependência”, “crítica à razão dualista” e “ideias fora do lugar” surgiram tentando dar conta de um País no qual o moderno não conseguia desfazer as desigualdades e o atraso.
Quando as nuvens começaram a se dissipar, lenta e gradualmente, e horizontes democráticos apareceram nas janelas, novos movimentos do xadrez intelectual ganharam o tabuleiro. A ideia de decifrar a nação vai cedendo lugar para a análise da sociedade e de seu protagonismo. O papel dos trabalhadores no populismo, a autonomia dos movimentos sociais na política que se faz na fábrica, na vizinhança, na praça pública. E a intelectualidade se mexe para, além de pensar, fazer a política. Oliveira, Chauí e Weffort integram as fileiras de fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), surgido em 1980. Cardoso e Giannotti, por sua vez, seriam baluartes do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), criado em 1988 das hostes dissidentes do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).
Essas caminhadas, encruzilhadas e desvios são recontados e analisados por Querido em uma prosa que trafega entre a exposição rigorosa das principais ideias de seus personagens e quadros da vida particular que iluminam seus trajetos. Afinidades são sublinhadas e antagonismos, dissecados, resultando em uma genealogia – literalmente falando, com direito a representações gráficas apresentadas pelo autor ao final de cada capítulo – que organiza toda essa série de intelectuais em uma história coerente.
Personagem central para o autor é Schwarz, o “fio vermelho” que atravessa e se diferencia das perspectivas de todos os intelectuais paulistas abordados no livro. As contribuições do crítico literário são alvo da atenção de Querido ao longo de toda a obra, sendo apresentadas como uma posição singular. Rejeita-se a seguir as opções intelectuais de seu colega de seminário Fernando Henrique Cardoso, preferindo uma postura mais próxima de Oliveira ou Weffort; não abandona, contudo, as análises da condição única da formação brasileira enquanto periferia, como fizeram Weffort, Chauí e Carvalho Franco.
Por isso vem de Schwarz a inspiração para o subtítulo da obra, referência a seu livro de 1977. As batatas couberam aos paulistas porque passou para eles, como Querido demonstra, a hegemonia intelectual que antes estava centralizada no Rio de Janeiro, com os pensadores do nacional-desenvolvimentismo. Um combate que pode ser rastreado desde a década de 1930, com seu Big Bang localizado na criação da própria Universidade de São Paulo, o contra-ataque intelectual de uma elite paulista politicamente derrotada após 1930 e 1932.
Foi preciso esperar algumas décadas, mas o xeque-mate veio. Primeiro intelectualmente, com o soterramento das ideias cultivadas pelo PCB, Iseb e Cepal. Em seguida, politicamente, coroada com a chegada de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Longe de ser uma comemoração coletiva, entretanto. Nessa rota de encontros, colisões e afastamentos, Querido comunica que o balanço é ambivalente.
“Se por um lado tais intelectuais tiveram uma importância inegável, e mesmo decisiva, na conformação das cenas intelectual e política do Brasil na segunda metade do século 20, por outro, seu desdobramento tardio parece cindido entre a resistência crítica de uns e a adesão sem complexos ao mundo vigente por outros.”
Uma adesão que, desde 2013 e, sobretudo, 2018, foi vítima de um terremoto. A crença neoliberal e a certeza da consolidação democrática esbarraram no “país real”, onde os processos de produção e reprodução da vida social permanecem pouco democráticos. “Catastrofismo” foi um termo mobilizado para se referir pejorativamente à resistência crítica de autores como Schwarz, Oliveira e Arantes. Entretanto, “catastrófico é o Brasil contemporâneo”, aponta Querido.
E é justamente para abrir caminho entre os escombros que o autor nos propõe a jornada. Funciona como um lembrete. Nas derradeiras palavras do livro, Querido revela a esperança de que tal balanço intelectual, ao mostrar os impasses do passado recente, sirva para a compreensão dos dilemas do presente. “Sem a rememoração crítica do passado, afinal, não há futuro alternativo possível.” Trata-se, para bom entendedor, menos de uma história dos bons tempos da Maria Antônia ou da Faculdade de Filosofia do que de um chamado à ação. É hora de lutar mais uma vez pelas batatas.
Lugar Periférico, Ideias Modernas: Aos Intelectuais Paulistas as Batatas, de Fabio Mascaro Querido, Editora Boitempo, 288 páginas, R$ 65,00.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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